Caixa de Pássaros - Capítulo 17

— Estão com medo da gente — diz Olympia, de repente.
— Como assim? — pergunta Malorie.
As duas estão sentadas no terceiro degrau da escada.
— Os outros moradores. Têm medo das nossas barrigas. E eu sei por quê. É porque um dia vamos ter que parir esses bebês.
Malorie olha para a sala de estar. Faz dois meses que chegou àquela casa. Está grávida de cinco. Também já pensou nisso. É claro que pensou.
— Quem você acha que vai fazer o parto? — pergunta Olympia, os olhos grandes e inocentes fixados na amiga.
— Tom — responde Malorie.
— Tudo bem, mas eu me sentiria muito melhor se houvesse um médico na casa.
Esse pensamento está sempre na cabeça de Malorie. O dia inevitável em que vai dar à luz.
Sem médicos. Sem remédios. Sem amigos ou parentes. Ela tenta imaginar aquilo como uma experiência rápida. Algo que vai acontecer e acabar logo. Visualiza o momento em que sua bolsa estoura, depois se imagina segurando o bebê. Não quer pensar no que vai acontecer nesse meio-tempo.
Os outros estão reunidos na sala de estar. Já terminaram as tarefas da manhã. Malorie ficou o dia todo com a sensação de que Tom está tramando algo. Ele tem andado distante. Isolado em seus pensamentos. Agora está no meio da sala, revelando uma nova ideia para os outros moradores. É exatamente o que Malorie queria que não fosse.
— Tenho um plano — diz ele.
— Ah, é? — pergunta Don.
— É. — Tom faz uma pausa, como se quisesse refletir mais uma vez sobre o que vai dizer, para ter certeza. — Precisamos de guias.
— Como assim? — pergunta Felix.
— Vou sair para procurar cachorros.
Malorie se levanta da escada e vai até a entrada da sala. A ideia de Tom sair da casa chamou sua atenção, assim como a dos outros.
— Cachorros? — pergunta Don.
— É — diz Tom. — Vira-latas. Cães de estimação. Deve haver centenas deles por aí. Soltos. Ou presos dentro de uma casa da qual não conseguem ir embora. Se vamos sair por aí para procurar comida, o que todos nós sabemos que vamos ter que fazer, gostaria que tivéssemos ajuda. Cachorros poderiam nos alertar.
— Tom, a gente não sabe como essas coisas afetam os animais — lembra Jules.
— Eu sei. Mas não podemos ficar parados.
A tensão no cômodo aumentou.
— Você é maluco — afirma Don. — Está realmente pensando em ir lá fora.
— Vamos levar armas — diz Tom.
Sentado na poltrona, Don se inclina para a frente.
— No que você está pensando exatamente?
— Tenho trabalhado na criação de capacetes — afirma Tom — para proteger nossas vendas. Vamos levar facas de carne. Os cachorros podem nos guiar. Se um deles enlouquecer, é só soltar a coleira. Se atacar você, mate o bicho com a faca.
— Sem enxergar.
— É. Sem enxergar.
— Não estou gostando disso — diz Don.
— Por que não?
— Pode haver maníacos por aí. Criminosos. As ruas estão diferentes, Tom. Não estamos mais num bairro residencial. Estamos no caos.
— Bem, alguma coisa tem que mudar — afirma Tom. — Precisamos progredir. Caso contrário, ficaremos esperando notícias em um mundo onde não há mais notícias.
Don olha para o carpete. Depois de volta para Tom.
— É perigoso demais. Não temos motivo para fazer isso.
— Temos todos os motivos para fazer isso.
— Acho melhor esperar.
— Esperar pelo quê?
— Por ajuda. Alguma coisa.
Tom olha para os cobertores que tapam as janelas.
— Ninguém vai vir ajudar, Don.
— Isso não significa que a gente deva ir lá fora procurar.
— Vamos votar — propõe Tom.
Don olha para os rostos dos outros moradores. Fica claro que está procurando alguém que concorde com ele.
— Uma votação — diz. — Também não gosto nem um pouco dessa ideia.
— Por que não? — pergunta Felix.
— Porque, Felix, não estamos decidindo quais baldes vamos usar para beber e quais vamos usar para ir ao banheiro. Estamos falando sobre um de nós ou mais saírem da casa sem um bom motivo para isso.
— Não é sem um bom motivo — retruca Tom. — Pense num cachorro como um sistema de alarme. Felix ouviu alguma coisa perto do poço duas semanas atrás. Era um animal? Um homem? Uma criatura? O cachorro certo teria latido. Estou falando de procurar no nosso quarteirão. E talvez no próximo também. Quero que nos dê doze horas. Só peço isso.
Doze horas, pensa Malorie. Pegar água no poço só leva meia hora.
No entanto, o número, por ser finito, a acalma.
— Realmente não entendo por que precisamos procurar vira-latas — diz Don, apontando para Victor, aos pés de Jules. — Temos um bem aqui. Vamos treiná-lo.
— De jeito nenhum — retruca Jules, levantando-se.
— Por que não?
— Não trouxe meu cachorro para que fosse sacrificado. Até a gente saber como os cães são afetados, não vou concordar com isso.
— Sacrificado — repete Don. — Boa escolha de palavra.
— A resposta é não — diz Jules.
Don se vira para Tom.
— Viu? Até o único dono de cachorro na casa é contra a sua ideia.
— Eu não disse que era contra a ideia do Tom — afirma Jules.
Don olha ao redor.
— Então todo mundo concorda com isso? É sério? Todos vocês acham que é uma boa ideia?
Olympia olha para Malorie com os olhos arregalados. Don, ao ver uma possível aliada, aproxima-se dela.
— O que você acha, Olympia? — indaga ele.
— Ah! Eu... Éééé... Eu... Não sei!
— Don — diz Tom —, vamos fazer uma votação legítima.
— Eu sou a favor — afirma Felix.
Malorie olha ao redor da sala.
— Eu também — diz Jules.
— Estou dentro — concorda Cheryl.
Tom se vira para Don. Nesse momento, Malorie sente algo dentro de si sucumbir.
A casa precisa dele, percebe ela.
— Vou com você — sugere Jules. — Se não vou deixar que usem meu cachorro, o mínimo que posso fazer é ajudar a encontrar outros.
Don balança a cabeça.
— Vocês são completamente doidos.
— Então vamos começar a montar um capacete para você também — diz Tom, colocando a mão no ombro de Jules.
Na manhã seguinte, Tom e Jules dão os últimos retoques no segundo capacete.
Sairão da casa hoje. Para Malorie, tudo está acontecendo rápido demais. Os moradores acabaram de votar a favor da excursão dos dois, mas será que eles precisam ir embora ?
Don não tenta esconder o que está sentindo. Os outros, como Malorie, sentem-se esperançosos. É difícil não ser contagiado pela energia de Tom, ela sabe disso. Se fosse Don o responsável pela saída, ela teria menos fé em vê-lo voltar com os cães-guia. Mas Tom exala certa energia. Quando diz que vai fazer alguma coisa, parece que já fez.
Malorie observa do sofá. Tanto Grávida quanto Enfim... um Bebê! falam sobre “o elo do estresse” que existe entre mãe e filho. Malorie não quer que seu bebê sinta a ansiedade que ela está sentindo agora, ao observar Tom se preparando para sair da casa.
Há duas mochilas de lona apoiadas na parede. Ambas estão cheias de alimentos enlatados, lanternas e cobertores. Ao lado delas estão facas grandes e as antigas pernas de um banco de cozinha, lixadas para se tornarem estacas afiadas. Os dois usarão os cabos de vassoura como bengalas.
— Talvez — diz Olympia — os animais não enlouqueçam porque o cérebro deles é muito pequeno.
Pela expressão de Don, parece que ele gostaria de dizer alguma coisa. Mas se contém.
— Pode ser que os animais não sejam capazes de enlouquecer — afirma Tom, ajustando a faixa que prende o capacete. — Talvez o indivíduo tenha que ser inteligente para perder a cabeça.
— Bem, eu gostaria de ter certeza disso antes de ir lá para fora — diz Don.
— Talvez — continua Tom — existam graus de insanidade. Não consigo parar de pensar em como as criaturas afetam pessoas que já são loucas.
— Por que não aliciamos umas dessas também? — bufa Don. — Tem certeza de que quer arriscar sua vida pela esperança de que os animais não sejam tão inteligentes quanto a gente?
Tom o encara.
— Eu gostaria de lhe dizer que tenho mais respeito pelos animais do que isso, Don. Mas, agora, tudo que me importa é sobreviver.
Por fim, Jules prende o capacete. Ele mexe a cabeça para ver se funciona. A parte de trás rasga e o capacete cai a seus pés.
Don balança a cabeça devagar.
— Droga — exclama Tom, recolhendo os pedaços. — Eu já tinha resolvido isso. Não se preocupe, Jules.
Tom cata os pedaços e os junta, então reforça a cordinha que segura o capacete com uma outra. Ele o coloca na cabeça de Jules.
— Pronto. Bem melhor.
Ao ouvir essas palavras, Malorie se sente mal. Durante toda a manhã ela sabia que Tom e Jules sairiam da casa, mas esse momento pareceu chegar rápido demais.
Não vá, quer dizer a Tom. A gente precisa de você. Eu preciso de você.
Mas ela entende que a casa precisa de Tom justamente por ele ser o tipo de homem que faria o que está fazendo hoje.
Próximos à parede, Felix e Cheryl ajudam Tom e Jules a prender as mochilas de lona às costas.
Tom está golpeando o ar com uma das estacas.
Malorie sente uma nova onda de náusea. Não há maneira melhor de se lembrar do horror desse novo mundo do que ver Tom e Jules se preparando daquele jeito para uma caminhada pelo quarteirão. Vendados e armados, eles parecem soldados de uma guerra encenada.
— Certo — diz Tom. — Ajudem a gente a sair.
Felix vai até a porta da frente. Os outros moradores da casa se reúnem atrás dele no hall.
Malorie os observa fechar os olhos, depois faz o mesmo. Em sua escuridão particular, seu coração bate ainda mais forte.
— Boa sorte — diz de repente, sabendo que se arrependeria se não desejasse isso.
— Obrigado — agradece Tom. — Lembrem-se do que eu disse: estaremos de volta em doze horas. Estão de olhos fechados?
Todos confirmam.
Então a porta da frente se abre. Malorie consegue ouvir os sapatos pisarem na varanda. A porta se fecha.
Para Malorie, parece que algo essencial foi trancado para fora.


Nenhum comentário :

Postar um comentário

Atenção: para postar um comentário, escolha Nome/Url. Se quiser insira somente seu nome.

Please, no spoilers!

Expresse-se:
(◕‿◕✿) 。◕‿◕。 ●▽●

⊱✿◕‿◕✿⊰(◡‿◡✿)(◕〝◕) ◑▂◐ ◑0◐

◑︿◐ ◑ω◐ ◑﹏◐ ◑△◐ ◑▽◐ ●▂● 

●0● ●︿● ●ω● ●﹏● ●△● ●▽●

Topo