Caixa de Pássaros - Capítulo 19

Com cinco meses, a gravidez de Malorie está evoluindo. É o fim dos meses de enjoo, mas um certo mal-estar ainda resiste. Ela sente azia. Suas pernas doem. Sua gengiva sangra. Seu cabelo escuro está com mais volume, assim como todos os outros pelos de seu corpo. Ela se sente monstruosa, distorcida, alterada. Mas, enquanto anda pela casa, carregando um balde de urina, nenhuma dessas coisas ocupa a mente de Malorie tanto quanto a segurança e o paradeiro de Tom e Jules.
É surpreendente, pensa ela, como já está apegada a cada um de seus colegas de casa. Antes de chegar, tinha ouvido muitas histórias de pessoas que machucavam os outros antes de ferir a si mesmas. Naquela época, os horrores preocupavam Malorie por causa do que significavam para ela e para seu filho. Agora a segurança de toda a casa a consome.
Já faz cinco horas que os dois saíram. E, a cada minuto que passa, a tensão aumenta, e Malorie não lembra se os outros moradores estão repetindo suas tarefas domésticas ou fazendo tudo pela primeira vez.
Ela deixa o balde perto da porta dos fundos. Daqui a alguns minutos, Felix vai jogá-lo do lado de fora. Agora ele está à mesa de jantar, consertando uma cadeira. Malorie passa pela cozinha e entra na sala de estar. Cheryl está limpando os móveis. Os porta-retratos. O telefone.
Malorie nota que os braços da amiga estão pálidos e magros. Depois de dois meses morando ali, nota que o corpo de todo mundo piorou bastante. Eles não comem bem. Não se exercitam o suficiente. Ninguém toma sol. Tom está lá fora, buscando uma vida melhor para todos. Mas quão melhor ela pode ser?
E quem avisaria aos moradores da casa caso Tom e Jules desaparecessem lá fora para sempre?
Ansiosa, Malorie pergunta a Cheryl se ela precisa de alguma ajuda. A amiga responde que não antes de sair da sala, mas Malorie não fica sozinha. Victor está sentado atrás da poltrona, encarando os cobertores que tapam as janelas. Tem a cabeça erguida. Sua língua está para fora da boca e sua respiração, ofegante. Malorie acha que o cachorro está esperando, assim como ela, a volta do dono.
Como se percebesse que está sendo observado, Victor se vira devagar para Malorie.
Depois volta a olhar para os cobertores.
Don entra na sala. Ele se senta na poltrona, então se levanta e sai do cômodo. Olympia desce a escada. Procura alguma coisa embaixo da pia da cozinha. Malorie vê quando Olympia percebe que o que procura já está em suas mãos. Ela retorna para o segundo andar. Cheryl está de volta e confere os porta-retratos. Ela acabou de fazer isso. Está fazendo de novo. Todos estão fazendo tudo de novo. Andando pela casa, nervosos, tentando ocupar a cabeça. Quase não falam um com o outro. Quase não desviam o olhar do chão. Pegar água no poço é uma coisa, e os moradores da casa se preocupam um com o outro quando fazem isso. Mas o que Tom e Jules estão fazendo é quase impossível de suportar.
Malorie se levanta e vai até a cozinha. Mas só há um lugar ali que se parece menos com a casa. Ela quer ir para lá. Precisa ir. Fugir.
O porão.
Felix está na cozinha, mas não presta atenção quando ela passa. Não diz uma palavra sequer quando Malorie abre a porta do porão e desce a escada até o chão de terra.
Ela puxa a cordinha e a luz se acende, iluminando o mesmo espaço que Tom lhe mostrou dois meses antes. No entanto, parece diferente agora. Há menos latas. Menos cores. E Tom não está ali, fazendo anotações, contando em porções o tempo que os moradores da casa têm antes que a fome e o desespero batam à porta.
Malorie vai até as prateleiras e lê as etiquetas, distraída.
Milho. Beterrabas. Atum. Ervilhas. Cogumelos. Frutas mistas. Vagem. Amarenas. Groselha. Toranja. Abacaxi. Feijões fritos. Mix de legumes. Chili. Castanhas. Tomates picados. Tomates italianos. Molho de tomate. Chucrute. Feijões cozidos. Cenouras. Espinafre. Vários tipos de caldo de galinha.
Ela se lembra de se sentir sufocada ali embaixo. As latas costumavam ocupar quase uma parede inteira. Agora há buracos. Enormes. Como se uma batalha houvesse acontecido e a comida tivesse sido o primeiro alvo. Será que terão comida suficiente até o bebê chegar? Se Tom e Jules não voltarem, será que o resto da comida a manterá até o dia tão temido? O que farão exatamente quando os alimentos enlatados acabarem? Caçar?
O bebê pode tomar o leite da mãe. Mas só se a mãe tiver comido.
Acariciando a barriga, Malorie vai até o banquinho e se senta.
Apesar do ar frio do porão, ela está suando. Os passos inquietos dos moradores da casa ressoam. O teto range.
Afastando o cabelo da testa, Malorie apoia as costas nas prateleiras. Ela conta as latas.
Suas pálpebras pesam. É bom descansar.
Então... ela adormece.
Quando acorda, Victor está latindo no andar de cima.
Malorie se apruma depressa.
Victor está latindo. Para o quê?
Atravessando o porão a passos rápidos, Malorie sobe a escada e corre para a sala de estar.
Os outros já estão lá.
— Pare com isso! — grita Don.
Victor está olhando para as janelas, latindo.
— O que está acontecendo? — pergunta Malorie, surpresa com o pânico na própria voz.
Don grita com Victor de novo.
— Ele só está tenso sem Jules — diz Felix, nervoso.
— Não — retruca Cheryl. — Ele ouviu alguma coisa.
— A gente não sabe se isso é verdade, Cheryl — irrita-se Don.
O cão late de novo. Um latido alto. Agudo. Nervoso.
— Victor! — pede Don. — Por favor!
Os moradores estão reunidos, bem próximos uns dos outros, no meio da sala. Não estão armados. Se Cheryl estiver certa, se Victor acha que há algo do lado de fora da casa, o que eles podem fazer?
— Victor! — berra Don outra vez. — Eu vou matar você, porra!
Mas o cachorro não para.
E Don, por mais que grite, está com tanto medo quanto Malorie.
— Felix — começa ela, devagar, encarando a janela da frente. — Você me disse que havia um jardim no quintal. Tem alguma ferramenta aqui?
— Tem — responde Felix, também encarando os cobertores negros.
— Estão aqui dentro?
— Estão.
— Por que não vai pegá-las?
Felix se vira para ela e hesita. Então sai da sala.
Malorie repassa os objetos da casa na cabeça. Toda perna de móvel é uma arma em potencial. Todo objeto sólido, munição.
Victor continua a latir e isso só está piorando. Nos breves intervalos entre os latidos, Malorie ouve os passos ansiosos de Felix, procurando as poucas ferramentas de jardinagem que podem protegê-los do que quer que esteja do lado de fora.

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