Caixa de Pássaros - Capítulo 2

Ainda faltam nove meses para as crianças nascerem. Malorie mora com a irmã, Shannon, numa modesta casa alugada que nenhuma das duas decorou. Mudaram-se há três semanas, apesar da preocupação dos amigos. Malorie e Shannon são mulheres populares e inteligentes, mas, quando estão juntas, tendem a se tornar insuportáveis, como aconteceu logo no dia em que carregaram suas caixas para dentro da casa.
— Estava pensando que faz mais sentido eu ficar com o quarto maior — disse Shannon, parada na beira da escada, no segundo andar. — Já que tenho a maior cômoda.
— Ah, fala sério — respondeu Malorie, segurando uma caixa de leite cheia de livros não lidos. — A janela daquele quarto é melhor.
As irmãs discutiram sobre isso por muito tempo, ambas com medo de brigar e provar já na primeira tarde juntas que os amigos e a família tinham razão. Por fim, Malorie concordou em deixar um cara ou coroa decidir, o que terminou com a vitória de Shannon — resultado que Malorie ainda acredita ter sido forjado de algum jeito.
Nesse dia, no entanto, Malorie não está pensando nas pequenas coisas que a irmã faz que a enlouquecem. Não está limpando em silêncio a bagunça de Shannon, fechando as portas dos armários, seguindo as trilhas de suéteres e meias que ela deixa pelos corredores. Não está bufando, resignada, nem balançando a cabeça enquanto liga o lava-louça ou empurra uma das caixas nunca desfeitas de Shannon do meio da sala para fora do caminho das duas. Em vez disso, está em frente ao espelho do banheiro do primeiro andar, nua, analisando a própria barriga.
Já houve uma vez que a sua menstruação não veio, diz a si mesma. Mas aquilo não é um consolo porque Malorie está ansiosa há semanas, sabendo que deveria ter sido mais cuidadosa com Henry Martin.
O cabelo negro pende sobre os ombros. Os lábios se curvam para baixo formando uma careta curiosa. Ela põe as mãos na barriga reta e balança a cabeça lentamente. Não importa como justifique a situação, ela se sente grávida.
— Malorie! — grita Shannon da sala. — O que você está fazendo aí?
Ela não responde. Vira-se de lado e inclina a cabeça. Seus olhos azuis parecem cinzentos à luz pálida do banheiro. Apoia uma das mãos no linóleo rosado da pia e arqueia as costas. Está tentando fazer a barriga diminuir, como se isso pudesse provar que não há nenhuma vidinha dentro dela.
— Malorie! — grita Shannon de novo. — Está passando outra reportagem na TV! Aconteceu alguma coisa no Alasca.
Malorie ouve a irmã, mas o que está acontecendo no mundo exterior não tem muita importância para ela agora.
Nos últimos dias, a internet enlouqueceu com uma história que as pessoas estão chamando de “Relatório Rússia”. Nela, um homem que viajava de carona num caminhão por uma estrada nos arredores de São Petersburgo pediu ao amigo, o motorista, que parasse o carro, então atacou-o e arrancou os lábios do colega com as unhas. Depois, tirou a própria vida na neve, usando a serra de mesa que estava na carroceria do caminhão. Uma história pavorosa, cuja notoriedade Malorie atribuía à maneira aparentemente ilógica da internet de tornar fatos aleatórios famosos. Mas então uma segunda história surgiu. Circunstâncias similares. Dessa vez em Yakutsk, a cerca de cinco mil quilômetros de São Petersburgo. Naquela cidade, uma mãe, “estável” segundo os conhecidos, enterrou os filhos vivos no jardim da família antes de se matar, usando as pontas afiadas de pratos quebrados. Até que uma terceira história, em Omsk, na Rússia, mais de três mil quilômetros a sudeste de São Petersburgo, surgiu na internet e rapidamente se tornou um dos assuntos mais discutidos em todas as redes sociais. Daquela vez, havia um vídeo. Pelo tempo que conseguiu, Malorie assistiu a um homem com a barba vermelha de sangue tentando atacar com um machado o cinegrafista que não podia ser visto.
Por fim, ele conseguiu. Mas Malorie não viu essa parte. Evitou continuar acompanhando aquele assunto. No entanto, Shannon, sempre mais dramática, insistia em contar as notícias assustadoras.
— No Alasca! — repete Shannon pela porta do banheiro— Isso fica nos Estados Unidos, Malorie!
O cabelo louro de Shannon denuncia as raízes finlandesas da mãe delas. Malorie se parece mais com o pai: olhos fortes e fundos e pele clara e lisa característica do Norte. Por terem crescido na Península Superior do Michigan, ambas sonhavam em morar no sul do estado, perto de Detroit, onde imaginavam que havia festas, shows, oportunidades de emprego e homens em abundância.
Este último item não havia se provado vantajoso para Malorie até ela conhecer Henry Martin.
— Ai, merda — berra Shannon. — Talvez tenha acontecido alguma coisa no Canadá também. Isso é sério, Malorie. O que você está fazendo aí?
Malorie liga a torneira e deixa a água fria correr por entre os dedos. Joga um pouco no rosto. Olhando para o espelho, ela pensa nos pais, ainda na Península Superior do Michigan. Os dois não sabem nada sobre Henry Martin. Nem ela falou com ele desde aquela única noite.
Mesmo assim, aqui está ela, provavelmente ligada a ele para sempre.
De repente, a porta do banheiro se abre. Malorie pega uma toalha.
— Pelo amor de Deus, Shannon.
— Você me ouviu, Malorie? Essa história está sendo noticiada em tudo quanto é canto. As pessoas estão começando a dizer que está relacionado com o fato de as vítimas terem visto alguma coisa. Não é estranho? Acabei de ouvir na CNN que isso é a única coisa em comum em todos os incidentes. Que as vítimas viram alguma coisa antes de atacar as pessoas e de se matar. Dá para acreditar nisso? Dá?
Malorie se vira devagar para a irmã, com o rosto totalmente inexpressivo.
— Ei, você está bem, Malorie? Não parece muito bem.
Malorie começa a chorar. Morde o lábio inferior. Já pegou a toalha, mas ainda não se cobriu. Continua parada diante do espelho como se examinasse a barriga nua. Shannon percebe isso.
— Ai, merda — exclama ela. — Você acha que está...
Malorie já faz que sim com a cabeça. As duas se aproximam no banheiro cor-de-rosa e Shannon abraça a irmã, dando tapinhas leves na cabeça dela, acalmando-a.
— Ok — diz. — Não vamos surtar. Vamos comprar um teste. É isso que as pessoas fazem. Ok? Não se preocupe. Aposto que mais da metade das mulheres que faz testes descobre que não está grávida.
Malorie não responde. Apenas suspira profundamente.
— Ok — repete Shannon. — Vamos lá.

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