Caixa de Pássaros - Capítulo 24

A dor no ombro de Malorie é tão exata, tão detalhada, que ela consegue enxergar seu contorno na mente. Pode ver a dor se mover quando o ombro se mexe. Não é a dor aguda que sentiu quando tudo aconteceu. Agora é profunda, constante e pulsante. São cores mudas de deterioração, em vez dos tons explosivos do ataque. Ela imagina como o chão do barco deve estar agora. Urina. Água. Sangue. As crianças perguntaram se ela estava bem. Ela disse que sim. Mas os filhos percebem quando lhe dizem uma mentira. Malorie os treinou para ouvir além das palavras.
Ela não está chorando agora, mas estava. Lágrimas silenciosas por trás da venda.
Silenciosas para ela. Mas as crianças sabem arrancar sons do silêncio.
Tudo bem, crianças, costumava dizer Malorie, sentada à mesa da cozinha. Fechem os olhos.
Elas fechavam.
O que estou fazendo?
Está sorrindo.
Muito bem, Menina. Como você soube?
Você respira diferente quando sorri, mamãe.
E no dia seguinte, faziam aquilo de novo.
Está chorando, mamãe!
Isso mesmo. E por que eu choraria?
Você está triste.
Não é a única razão.
Está com medo!
Isso mesmo. Vamos tentar outra.
A água está ficando mais fria. Malorie a sente respingar a cada remada extenuante.
— Mamãe — chama o Garoto.
— O que foi?
Ela fica alerta no exato instante em que ouve a voz dele.
— Você está bem?
— Já me perguntou isso.
— Mas não parece bem.
— Eu disse que estou. O que quer dizer que estou bem. Não me questione.
— Mas você está respirando diferente! — diz a Menina
Ela está. Sabe que está. Está se esforçando, pensa.
— É só porque estou remando — mente Malorie.
Quantas vezes ela questionou seu dever como mãe enquanto treinava as crianças para se tornarem máquinas de ouvir? Para Malorie, assistir ao desenvolvimento delas era algo horrível algumas vezes. Como se tivesse sido deixada ali para criar duas crianças mutantes.
Pequenos monstros. Criaturas capazes de aprender a ouvir um sorriso. Que podiam lhe dizer que estava com medo antes que ela mesma soubesse.
A ferida no ombro está feia. E, durante anos, Malorie temeu ter que lidar com um ferimento dessa gravidade. Houve outras ocasiões. Por um triz. Caiu da escada do porão quando as crianças tinham dois anos. Tropeçou enquanto levava um balde do poço e bateu a cabeça numa pedra. Uma vez achou que tivesse quebrado o pulso. Teve um dente lascado. Não consegue se lembrar de como eram suas pernas sem hematomas. E agora a pele do ombro parece ter sido arrancada da carne. Ela quer parar o barco. Quer procurar um hospital. Correr pelas ruas, gritando: Preciso de um médico, preciso de um médico, PRECISO DE UM MÉDICO OU VOU MORRER E AS CRIANÇAS VÃO MORRER SEM MIM!!
— Mamãe — chama a Menina.
— O que foi?
— Estamos indo para o lado errado.
— O quê?
À medida que ficava mais exausta, Malorie fez mais esforço com o braço mais forte. Agora está remando contra a correnteza e nem havia notado.
De repente, a mão do Garoto está sobre a dela. A princípio, Malorie se encolhe, mas então entende. Com os dedos nos dela, ele se movimenta com a mãe, como se estivesse girando a manivela do poço.
Naquele mundo frio e doloroso, o Garoto, ao ouvi-la mover-se com dificuldade, passa a ajudar a mãe a remar.

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