Caixa de Pássaros - Capítulo 25

O husky está lambendo a mão de Tom. Jules ronca, à esquerda, no chão acarpetado da sala da casa. Atrás dele, uma TV gigantesca e silenciosa está em um aparador de carvalho. Há caixas de discos encostadas na parede. Abajures. Um sofá xadrez. Uma lareira de pedra. Um enorme quadro com uma paisagem de praia preenche o espaço acima da lareira. Tom acha que é o norte de Michigan. Sobre ele, há um ventilador de teto empoeirado.
O cachorro está lambendo sua mão porque ele e Jules se banquetearam com batatas fritas murchas naquela noite.
Esta casa se revelou mais frutífera do que a anterior. Os dois recolheram algumas latas, papel, dois pares de botas de criança, duas jaquetas pequenas e um resistente balde de plástico antes de cair no sono. Mas não encontraram uma lista telefônica. Nos tempos modernos em que todo mundo tem um celular no bolso, a lista telefônica, pelo que parece, entrou em extinção.
A casa mostra que os antigos donos saíram da cidade por vontade própria. Há mapas com indicações para uma pequena cidade no Texas, na fronteira com o México. Um manual de sobrevivência a crises marcado a caneta. Longas listas de mantimentos que incluem gasolina e peças de carro. Recibos contam a Tom que a família comprou dez lanternas, três varas de pescar, seis facas, garrafas de água, propano, nozes enlatadas, três sacos de dormir, um gerador, um arco e flecha, óleo de cozinha, gasolina e lenha. Enquanto o cachorro lambe sua mão, Tom pensa no Texas.
— Pesadelos — diz Jules.
Tom olha para ele e percebe que o amigo está acordado.
— Sonhei que a gente não encontrava o caminho de volta para casa — continuou Jules. — Que eu nunca mais via Victor.
— Lembre-se da estaca que fincamos no gramado — diz Tom.
— Não me esqueci dela — afirma Jules. — Sonhei que alguém a tinha arrancado.
Jules se levanta e os dois comem nozes de café da manhã. O husky ganha uma lata de atum.
— Vamos atravessar a rua — sugere Tom.
Jules concorda. Os dois se preparam. Logo, saem dali.
Do lado de fora, a grama dá lugar ao concreto. Estão na rua de novo. O sol está quente. O ar fresco é gostoso. Tom está prestes a dizer isso, mas Jules de repente o chama.
— O que é isto?
Tom, às cegas, vira-se.
— O quê?
— É um mastro, Tom. Parece... Acho que é uma tenda.
— No meio da rua?
— É. No meio da nossa rua.
Tom se aproxima de Jules. As cerdas de sua vassoura encontram algo que soa como se fosse feito de metal. Com cuidado, ele estende a mão para a escuridão e toca o que Jules encontrou.
— Não estou entendendo — diz.
Pondo a vassoura no chão, Tom usa as mãos para tatear acima de sua cabeça, pela tenda de lona. Aquilo o lembra de uma feira de rua à qual levou a filha certa vez. As ruas estavam bloqueadas com cones laranja. Centenas de artistas vendiam pinturas, esculturas, desenhos.
Estavam posicionados lado a lado, muitos deles para contar. Todos vendiam seus produtos sob tendas de lona macia.
Tom entra debaixo da tenda. Usa a vassoura para traçar um arco no ar acima dele. Não há nada ali além dos quatro mastros que sustentam a tenda.
Militar, pensa. Essa imagem é muito distante de uma feira de rua.
Quando ele era criança, a mãe de Tom se vangloriava para os amigos. Dizia que o filho “se recusava a deixar um problema para lá”. Ele tenta resolvê-lo, afirmava ela. Não há nada nesta casa que não seja do interesse dele. Tom se lembra de observar os rostos dos amigos da mãe, de como eles sorriam quando ela dizia aquilo. Brinquedos?, perguntava a mãe dele. Tom não precisa de brinquedos. Um galho de árvore é um brinquedo. Os fios do videocassete são brinquedos. Como as janelas funcionam. Durante toda a vida, ele foi descrito daquela maneira. O tipo de cara que quer saber como as coisas funcionam.
Pergunte ao Tom. Se ele não souber, vai descobrir. Ele conserta coisas. Tudo. No entanto, para Tom, aquele comportamento não era digno de atenção. Até Robin nascer. A partir desse momento, a fascinação infantil pelo funcionamento das coisas o dominou. Agora, parado embaixo daquela tenda, Tom não sabe dizer se ele é uma criança que quer entender a tenda ou o pai que a aconselha a se afastar.
Os dois examinam aquilo, às cegas, por vários minutos.
— Talvez a gente possa usar esse troço — diz Tom, mas Jules já o está chamando, a distância.
Tom atravessa a rua. Segue a voz de Jules até se encontrarem em outro gramado.
A primeira casa que visitam naquele dia está destrancada. Eles concordam em não abrir os olhos lá dentro. E entram.
No interior, há uma brisa. Os homens percebem que as janelas estão abertas antes mesmo de conferi-las. O cabo de vassoura de Tom lhe revela que o primeiro cômodo onde entram está cheio de caixas. Essas pessoas, pensa, estavam se preparando para ir embora.
— Jules — pede Tom —, confira as caixas. Vou dar uma olhada no resto da casa.
Já faz vinte e quatro horas que deixaram a própria casa.
Agora, com carpete sob seus pés, Tom anda devagar pela casa de um estranho. Encontra um sofá. Uma cadeira. Uma TV. Mal consegue escutar Jules e o husky. Vento sopra pelas janelas abertas. Tom chega a uma mesa. Tateia a superfície até seus dedos encontrarem algo.
Uma tigela, pensa.
Erguendo-a, ele ouve algo cair na mesa. Tateia, encontra o objeto e descobre que é um utensílio que ele não imaginava.
É como uma concha de sorvete, só que menor.
Tom passa os dedos pelo objeto. Há uma substância espessa nele.
Ele estremece. Não é sorvete. Tom tocou em algo parecido certa vez.
Na beira da banheira. No pulso dela. O sangue lá estava assim. Espesso. Morto. O sangue de Robin.
Estremecendo, ele leva a tigela para mais perto do peito enquanto pousa o pegador na mesa. Passa os dedos lentamente pela curva suave da cerâmica até tocar em algo no fundo.
Engasga e deixa a tigela cair no chão acarpetado.
— Tom?
Ele não responde de imediato. O que acabou de tocar... Já encostou em algo parecido com aquilo também.
Robin havia levado para casa. Da aula de ciências. Ela o guardou numa lata aberta de café cheia de moedas. Tom o encontrou quando Robin estava na escola. Ao vasculhar a casa em busca da origem daquele cheiro.
Sabia que havia encontrado, quando, perto da borda da lata, sobre a pilha de moedas, viu uma pequena bola descolorida. Institivamente, ele a pegou. Ela murchou entre seus dedos. Era um olho de porco. Dissecado. Robin havia mencionado que fizera isso na aula.
— Tom? O que aconteceu aí?
Jules está falando com você. Responda.
— Tom?
— Estou bem, Jules! Só deixei uma coisa cair.
Afastando-se da mesa, louco para sair daquele cômodo, ele esbarra em outra coisa.
Conhece aquela sensação também.
Isso era um ombro, pensa. Há um corpo sentado em uma cadeira a esta mesa.
Tom o imagina. Sentado. Sem olhos.
A princípio, ele não consegue se mover. Está virado para o lugar onde o corpo deve estar.
Então corre para fora do cômodo.
— Jules — chama —, vamos sair daqui.
— O que aconteceu?
Tom conta. Minutos depois, estão na rua. Decidiram procurar o caminho de volta para casa. Um cachorro já basta. Entre a tenda e o que Tom encontrou na tigela, nenhum dos dois quer mais ficar por ali.
Eles atravessam um gramado. Depois a entrada de uma garagem. Depois duas. O cachorro está puxando Jules. Tom se esforça para acompanhar. Sente que está se perdendo na escuridão da venda. Grita para Jules.
— Estou aqui! — responde o amigo.
Tom segue a voz dele. E o encontra.
— Tom, o cachorro está chamando atenção para essa garagem.
Ainda tremendo pela descoberta na última casa e assustado, confuso com a tenda sem sentido no meio da rua, Tom diz que eles devem seguir o caminho para casa. Mas Jules quer saber o que tanto interessa ao cão.
— É uma garagem anexa a uma casa — diz ele. — O husky está agindo como se houvesse alguma coisa viva lá dentro.
A porta lateral está trancada. Ao encontrar uma única janela, Jules a quebra. Diz a Tom que está protegida. Papelão. É pequena, mas um deles deve conseguir entrar. Jules diz que entrará.
Tom se oferece também. Os dois amarram o cachorro a uma calha e entram pela janela.
Do lado de dentro, algo rosna para eles.
Tom se vira de volta para a janela. Jules grita:
— Parece outro cachorro!
Tom concorda. O coração dele bate depressa, depressa demais, pensa, e ele apoia uma das mãos no parapeito da janela, pronto para pular de volta.
— Não acredito nisso — diz Jules.
— No quê?
— É outro husky.
— O quê? Como sabe disso?
— Porque estou tocando no rosto dele.
Tom se afasta da janela. Ouve o cachorro comer. Jules o está alimentando.
Então, ao lado do cotovelo de Tom, emerge outro som.
De início, parecem crianças rindo. Em seguida, lembra uma música.
Depois, os dois ouvem o som indiscutível de chilreios.
Pássaros.
Com cuidado, Tom se afasta. Os chilreios silenciam. Ele se aproxima de novo. O som fica mais alto.
É claro, pensa Tom, sentindo o entusiasmo que esperava sentir quando deixaram a casa no dia anterior.
Enquanto Jules fala baixinho com o cachorro, Tom se aproxima dos pássaros até os chilreios ficarem insuportáveis. Ele tateia uma prateleira.
— Tom — pede Jules no escuro —, cuidado...
— Estão numa caixa — explica Tom.
— O quê?
— Cresci com um cara cujo pai era caçador. Os pássaros dele faziam o mesmo som. Piavam mais alto quando uma pessoa se aproximava.
Tom está tocando a caixa.
Ele está pensando.
— Jules — diz. — Vamos para casa.
— Gostaria de ter mais tempo com o cachorro.
— Vai ter que fazer isso em casa. Podemos trancá-los num quarto se houver algum problema. Mas já encontramos o que saímos para procurar. Vamos para casa.
Jules põe a coleira no outro husky. Este se mostra menos resistente. Enquanto saem da garagem pela porta lateral, Jules pergunta:
— Está trazendo os pássaros?
— Estou. Tive uma ideia.
Do lado de fora, os dois pegam o primeiro husky e andam de volta para casa. Jules leva o segundo cachorro, Tom, o primeiro. Aos poucos, os dois atravessam gramados e calçadas até chegarem à estaca que haviam fincado no dia anterior.
Na varanda, antes de bater na porta, Tom ouve os moradores da casa discutindo. Então pensa ter escutado um barulho vindo da rua, atrás dele.
Ele se vira.
Espera.
Pergunta-se a que distância está a tenda.
Depois bate na porta.
Lá dentro a discussão para. Felix grita para ele. Tom responde:
— Felix! É Tom!


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