Caixa de Pássaros - Capítulo 26

Você vai ter que abrir os olhos...
— Você precisa comer, Menina — diz Malorie com a voz fraca.
O garoto comeu nozes do pacote. A Menina não quer.
— Se não comer — diz Malorie, entre caretas de dor —, vou parar de remar e largar você aqui.
Malorie sente a mão da Menina em suas costas. Ela para de remar e pega algumas nozes do pacote para a filha. Até isso faz seu ombro doer.
No entanto, além da dor, um pensamento a ronda. Uma verdade que Malorie não quer encarar.
Sim, o mundo atrás da venda é de um tom cinza doente. Sim, ela está preocupada com a possibilidade de desmaiar. Mas uma realidade muito pior atravessa a miríade de problemas e medos. É complicada, engenhosa. Flutua, rodeia, então pousa nos limites da imaginação de Malorie.
É uma coisa da qual ela tem se protegido e escondido desde o início da manhã.
Mas isso foi o foco de todas as decisões que tomou nos últimos anos.
Você diz a si mesma que esperou quatro anos porque estava com medo de perder a casa para sempre. Diz a si mesma que esperou quatro anos porque queria treinar as crianças primeiro. Mas nada disso é verdade. Você esperou quatro anos porque aqui, nesta viagem, neste rio, onde loucos e lobos a espreitam, onde as criaturas podem estar por perto, NESTE DIA você terá que fazer uma coisa que não faz há muito mais do que quatro anos.
Hoje você vai ter que abrir os olhos.
Ao ar livre.
É verdade. Ela sabe disso. Parece que sempre soube. E do que tem mais medo: da possibilidade de uma criatura estar em seu campo de visão? Ou da irreal paleta de cores que explodirá diante dela quando abrir os olhos?
Como será o mundo agora? Será que você vai reconhecê-lo?
Está cinza? Será que as árvores enlouqueceram? As flores, as plantas, o céu? Será que o mundo inteiro enlouqueceu? Será que luta contra si mesmo? A Terra refuta os próprios oceanos? O vento ficou mais forte. Será que viu alguma coisa? Está maluco também?
Pense, diria Tom. Você está conseguindo. Está remando. Apenas continue a remar. Tudo isso significa que vai conseguir. Vai ter que abrir os olhos. Você consegue. Porque precisa.
Tom. Tom. Tom. Tom. Tom.
Ela deseja estar ao lado dele mais do que nunca.
Mesmo nesse mundo novo, ali no rio, enquanto o vento começa a uivar, a água fria respinga em sua calça jeans e animais selvagens espreitam as margens. O corpo dela está destruído e a mente é prisioneira do cinza, e mesmo ali Tom chega até ela como algo iluminado, algo certo, algo bom.
— Estou comendo — afirma a Menina.
Isso também é bom. Malorie encontra forças para incentivá-la.
— Muito bem — diz, a respiração ofegante.
Mais movimentos à esquerda na floresta. Soa como um animal. Poderia ser o homem do barco. Poderia ser uma criatura. Poderia ser uma dúzia delas. Será que o barco incomodará um bando de ursos famintos, em busca de peixes?
Malorie está ferida. Essa palavra não para de retornar à sua mente, num redemoinho.
Assim como Tom. Assim como as cores cinzentas por trás da venda. E como os barulhos do rio e do novo mundo. O ombro. A ferida. Aconteceu. Exatamente o que teriam dito que aconteceria se houvesse alguém por perto para alertá-la.
Siga o rio, se precisar, mas saiba que pode se machucar.
Ah, não sei se eu faria isso. Você pode se machucar.
É perigoso demais. O que aconteceria com as crianças se você se machucasse lá fora?
O mundo agora é selvagem, Malorie. Não saia. Não entre no rio.
Você pode se machucar.
Machucar.
MACHUCAR.
MACHUCAR!
Shannon. Pense em Shannon. Agarre-se a ela.
Malorie tenta. Uma lembrança abre caminho entre a multidão de pensamentos sombrios que avançaram sobre ela. Lembra-se de Shannon e ela numa colina. Fazia sol naquele dia. Malorie protegia os olhos com o pequeno antebraço. Apontava para o céu.
É Allan Harrison!, dizia, referindo-se a um menino da sua turma. Aquela nuvem ali parece Allan Harrison!
Estava rindo.
Qual?
Aquela ali! Viu?
Shannon se aproximou dela na grama. Deitou a cabeça ao lado da de Malorie.
É! Hahaha! Estou vendo também! E olhe aquela ali! Aquela é Susan Ruth!
As irmãs ficaram deitadas ali durante horas, observando rostos nas nuvens. Bastava um nariz. Uma orelha. Talvez acima de uma delas houvesse cachos, como os de Emily Holt.
Você se lembra do céu?, pergunta a si mesma, ainda remando, por incrível que pareça. Estava tão azul. E o sol estava tão amarelo quanto o desenho de uma criança. A grama era verde. O rosto de Shannon estava pálido, suave, branco. Assim como as mãos dela, apontando para as nuvens. Naquele dia, havia cores em todos os lugares para onde se olhava.
— Mamãe? — chama o Garoto. — Mamãe, você está chorando?
Quando abrir os olhos, Malorie, vai ver tudo de novo. O mundo inteiro será iluminado. Você viu paredes e cobertores. Escadas e carpetes. Manchas e baldes de água do poço. Cordas, facas, um machado, arame, fios e colheres. Alimentos enlatados, velas e cadeiras. Fita adesiva, pilhas, madeira e gesso. Faz anos que a única coisa que você pode ver são os rostos dos outros moradores da casa e o dos seus filhos. As mesmas cores. As mesmas cores. As mesmas cores há anos. ANOS. Está preparada? E o que mais assusta você? As criaturas ou você mesma, quando as lembranças de um milhão de cores e imagens inundarem sua mente? O que mais assusta você?
Malorie está remando muito devagar. A menos da metade da velocidade com que remava dez minutos atrás. A água, a urina e o sangue molham seus tornozelos. Animais, homens loucos ou criaturas se movimentam nas margens. O vento está gelado. Tom não está ali. Shannon não está ali. O mundo cinzento por trás da venda começa a rodar, como uma gosma espessa que se aproxima do ralo.
Ela vomita.
No último instante, Malorie se pergunta se o que está acontecendo com ela é uma coisa horrível. Desmaiar. O que vai acontecer com as crianças? Vão ficar bem se a mamãe simplesmente desmaiar?
E pronto.
As mãos de Malorie soltam os remos. Em sua mente, Tom a observa. As criaturas a observam também.
Então, enquanto o Garoto lhe pergunta algo, Malorie, a capitã daquele pequeno barco, apaga totalmente.

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