Caixa de Pássaros - Capítulo 28

É a manhã seguinte. Malorie se levanta da cama e se veste. Parece que todos estão no andar de baixo.
— Vocês também tinham luz elétrica? — pergunta Felix enquanto ela entra na sala de estar.
Gary está sentado no sofá. Ao ver Malorie, sorri.
— Este — diz ele, indicando a moça com a mão — é o anjo que tocou meu rosto quando entrei. Tenho que admitir: o contato humano quase me fez chorar.
Malorie acha que Gary fala um pouco como um ator. Tem floreios teatrais.
— Então foi mesmo uma votação que decidiu o meu destino? — pergunta ele.
— Foi — responde Tom.
Gary assente.
— Na casa de onde vim, não havia esse tipo de cortesia. Se alguém tinha uma ideia, a pessoa a realizava com determinação, mesmo que nem todos aprovassem. É um alívio encontrar pessoas que mantiveram um pouco da civilidade da nossa antiga vida.
— Eu votei contra — diz Don, de repente.
— É mesmo? — pergunta Gary.
— É. Votei. Sete pessoas sob um mesmo teto já é o bastante.
— Entendo.
Um dos huskies se levanta e vai até Gary. O homem faz carinho atrás das orelhas do cão.
Tom começa a explicar a ele as mesmas coisas que um dia explicou a Malorie. Energia hidroelétrica. Os mantimentos no porão. A falta de uma lista telefônica. Como George morreu. Depois de um tempo, Gary fala sobre um companheiro da antiga casa. Um “homem perturbado” que não acreditava nem um pouco que as criaturas causavam mal.
— Ele achava que a reação das pessoas às criaturas era psicossomática. Em outras palavras, toda essa história de insanidade não seria causada pelas criaturas, mas pelas pessoas dramáticas que as veem.
Essa história de insanidade, pensa Malorie. Será que tais palavras de desprezo foram mesmo ditas pelo morador da antiga casa de Gary?
Ou pelo próprio Gary?
— Gostaria de contar a vocês sobre minha experiência em minha antiga casa — continua Gary. — Mas aviso que foi sombria.
Malorie quer ouvir essa história. Todos querem. Gary passa a mão pelo cabelo.
Então Gary começa:
— Não respondemos a nenhum anúncio e não éramos tão jovens quanto vocês. Não havia um espírito de comunidade nem o esforço de formar um grupo coeso. Meu irmão Duncan tem um amigo que levou o Relatório Rússia muito a sério. Ele foi um dos primeiros a acreditar. Tudo se encaixava bem nas teorias conspiratórias e na paranoia que ele tinha de que o governo ou alguém queria nos pegar. Em certos momentos, mesmo eu não consigo acreditar que isso esteja acontecendo. E quem pode me culpar? Tenho mais de quarenta anos. Estava tão acostumado com a vida que levava que nunca imaginei uma assim. Resisti. Mas Kirk, o amigo do meu irmão, tinha certeza desde o início. E nada, pelo que parecia, tiraria a ideia da cabeça dele. Certa tarde, Duncan me ligou e disse que Kirk sugeriu que a gente se reunisse na casa dele por alguns dias ou até saber mais sobre aquela “coisa”. “Que coisa?”, perguntei. “Gary, está em todos os canais.”
“‘Que coisa, Duncan? O que aconteceu na Rússia? Você não pode estar falando sério.’ ‘Por favor’, pediu ele. ‘Vamos tomar umas cervejas, comer umas pizzas e agradar Kirk. Não temos nada a perder.’”
“Disse a ele que não, obrigado. Ficar perto do maluco do Kirk enquanto ele analisava reportagens sensacionalistas não parecia nada divertido para mim. Mas não demorou muito e fui para lá.”
“Tinha ouvido falar dos incidentes como todo mundo no país. Isso começou a me deixar preocupado. Havia tantos casos. Mesmo assim, estupidamente, tentei preservar minha descrença. Esse tipo de coisa não acontece assim. Mas então ouvi um caso que me forçou a agir. Foi aquele sobre as irmãs no Alasca. Vocês devem estar se perguntando por que levei tanto tempo para me convencer. Esse incidente aconteceu bem mais tarde, mas o Alasca fica nos Estados Unidos, e sou provinciano o bastante para me preocupar só quando as coisas acontecem perto de casa. Até mesmo o repórter estava claramente assustado com o que dizia. É, inclusive o cara que transmitiu a notícia tremia.”
“Vocês conhecem a história. Uma mulher viu duas vizinhas idosas, irmãs, saírem de casa. Ela supôs que tinham ido dar a caminhada de todos os dias. Três horas depois, ouviu no rádio que as irmãs estavam em frente ao hospital, agachadas na escada de pedra, tentando morder quem passava. A mulher foi até o local, considerando-se mais próxima das duas do que qualquer pessoa e mais apta a ajudá-las. Mas não foi o caso. E as fotos da CNN mostraram a mulher sem o rosto, que estava literalmente jogado na calçada ao lado do crânio sangrento. Ao lado dela, estavam as duas senhoras, mortas pela polícia. Aquela imagem me aterrorizou. Pessoas tão normais. Um local tão comum.”
“Para Kirk, o incidente no Alasca validava todas as fantasias paranoicas dele. Apesar do meu medo crescente, eu não estava pronto para trocar a vida que tinha por essa nova existência militar que ele estava adotando. Decidi cobrir as janelas, trancar as portas e me esconder, mas Kirk já bolava planos para combater o que ele acreditava ser uma ‘invasão’. Não ficou claro se eram alienígenas ou não. Ele falava em armas e em equipamentos como um veterano de guerra. Mas é claro que não era um. Nunca havia se alistado para nada na vida.”
Gary faz uma pausa. Parece ponderar. Prossegue:
— Logo a casa ficou cheia de homens quase militares. Kirk estava adorando o novo cargo de general e, de fora, eu via muitas coisas ridículas. Acabei criando o hábito de dizer a Duncan que ele deveria ficar longe de Kirk. Um homem como Kirk era capaz de prejudicar os próprios amigos. Os outros moradores da casa estavam ficando cada vez mais bélicos, empolgados com a fantasia de derrotar os vilões da “invasão” de Kirk. Dias se passaram, mas nada foi feito a partir das alegações escandalosas de que protegeriam a cidade, eliminariam a causa dessa loucura global e garantiriam um lugar na história como o grupo que resolveu “o Problema”. No entanto, um homem na casa agiu segundo o que acreditava. Seu nome era Frank e ele acreditava que as criaturas contra as quais Kirk se preparava para lutar não eram uma ameaça. Mesmo assim, ele foi para a casa, com medo, admitia, do caos inevitável que varreria a nação.
“Enquanto Kirk planejava treinamentos diários inúteis, Frank se tornou uma espécie de eremita e quase não saía do seu quarto no segundo andar. E lá dentro, ele escrevia. Dia e noite, Frank escrevia a lápis, a caneta, a marca-texto e a maquiagem. Um dia, andando pelo corredor do segundo andar, ouvi algo atrás da porta fechada do quarto dele. Era um som furioso, laborioso, irritado, incansável. Abri um pouco a porta e o vi debruçado sobre uma escrivaninha, sussurrando sobre uma sociedade ‘fanática, exagerada’, que ele odiava enquanto escrevia. Eu não tinha como saber o que estava escrevendo. Mas queria descobrir.”
“Conversei com Duncan sobre isso. O rosto do meu irmão estava pintado com uma camuflagem ridícula. Àquela altura, ele já havia sido infectado pela maluquice de Kirk. Não acreditava que Frank fosse uma ameaça. Frank, que usava expressões como histeria em massa idolatria psicossomática enquanto Kirk e os outros fingiam treinar tiro ao alvo, sem armas, no porão. Todos repudiavam Frank por considerá-lo um pacifista inútil.”
Gary passa as mãos pelo cabelo de novo.
— Resolvi descobrir o que Frank estava fazendo no quarto dele. Comecei a procurar uma oportunidade para ler o que ele escrevia em segredo.
“O que vocês acham que aconteceria com um homem já louco se ele visse as criaturas lá fora? Acham que elas não o afetariam, que a mente dele já estaria destruída? Ou acham que a loucura alcançaria outro nível de insanidade, um nível superior? Talvez os doentes mentais herdem este novo mundo, por serem incapazes de ficarem mais loucos do que já são. Não sei mais sobre isso do que vocês.”
Gary toma um gole de água.
— O melhor momento se apresentou da seguinte maneira: Kirk e os outros estavam ocupados no porão. Frank tomava banho. Resolvi dar uma olhada rápida. Entrei no quarto dele e encontrei os escritos na gaveta da escrivaninha. Não foi uma tarefa fácil, pois, na época, eu já estava com medo do cara. Os outros podiam ignorar Frank, achar graça dele, mas eu suspeitava de possibilidades mais tenebrosas. Comecei a ler. Logo fiquei impressionado com suas palavras. Não importava quanto tempo fazia desde que Frank começara a escrever. Parecia impossível ele ter escrito aquilo tudo. Dúzias de cadernos, em várias cores, um mais raivoso do que o outro. Pequenos versos escritos à mão eram seguidos de enormes frases iluminadas, todas declarando que não era preciso temer as criaturas. Ele se referia a nós como “aqueles com mentes pequenas” que “precisavam ser exterminados”. Ele era mesmo perigoso. De repente, ao ouvi-lo sair da banheira, corri para fora do quarto. Talvez Duncan não estivesse tão errado em se juntar a Kirk. Aqueles cadernos me mostraram que havia reações muito piores ao novo mundo.
Gary respira fundo. Seca os lábios com as costas da mão.
— Quando acordamos no dia seguinte, os cobertores haviam sido retirados das janelas.
Cheryl arqueja.
— As portas estavam destrancadas.
Don começa a dizer alguma coisa.
— E Frank tinha ido embora. Levara o caderno.
— Puta que pariu! — exclama Felix.
Gary assente com a cabeça.
— Alguém se machucou? — pergunta Tom.
Os olhos de Gary se enchem de lágrimas, mas ele se controla.
— Não — diz. — Ninguém. E Frank teria incluído isso nas anotações dele, tenho certeza.
Malorie leva a mão à barriga.
— Por que você foi embora? — pergunta Don, impaciente.
— Fui embora porque Kirk e os outros começaram a falar muito sobre procurar Frank — justifica Gary. — Queriam matar o cara pelo que ele havia feito.
A sala fica em silêncio.
— Então soube que precisava sair dali. Aquela casa estava arruinada. Destruída. Pelo que parece, a de vocês não está. Por isso — diz Gary, olhando para Malorie —, agradeço por você ter me deixado entrar.
— Não fui eu que deixei você entrar — retruca Malorie. — Fomos todos nós.
Que tipo de homem, pensa ela, abandonaria o irmão?
Malorie olha para Don. Para Cheryl. Para Olympia. Será que a história de Gary fascinou aqueles que votaram para que ele não entrasse? Ou justificou os medos deles?
Essa história de insanidade.
Tom e Felix estão questionando Gary sobre a história. Jules também acrescenta algumas perguntas. Mas Cheryl saiu da sala. E Don, que sempre tem algo a dizer sobre tudo, não fala nada. Ele apenas observa.
Uma divisão, pensa Malorie, está crescendo.
Para ela não importa exatamente quando aquilo começou. Está visível agora. Gary trouxe consigo uma mala. Uma história. E, de alguma forma, uma divisão.

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