Caixa de Pássaros - Capítulo 31

Para Malorie, desde a chegada de Gary, a casa parece totalmente diferente, dividida. É uma pequena mudança, mas, nessas circunstâncias, qualquer mudança é grande.
E é Don quem mais a preocupa.
Muitas vezes, quando Tom, Jules e Felix estão conversando na sala de estar, Don está na sala de jantar com Gary. Ele demonstrou muito interesse na história do homem que arrancou os cobertores das janelas e destrancou as portas. Ao lavar roupas na pia da cozinha, usando a metade restante do antepenúltimo frasco de detergente, Malorie escuta as duas conversas ao mesmo tempo. Enquanto Tom e Jules transformam camisas de manga comprida em coleiras de cachorro, Gary explica para Don como Frank pensava. Sempre o que Frank pensava. Nunca o que Gary pensa.
— Não acho que seja uma questão de um homem estar mais bem preparado do que outro — diz Gary. — Acho que é mais parecido com um filme 3-D. De início, o público acha que os objetos estão mesmo se aproximando. Então erguem as mãos para se proteger. Mas os inteligentes, os que prestam muita atenção, sabem que estiveram seguros o tempo todo.
Don abandonou a antipatia inicial por Gary e agora concorda com ele. Malorie acha que viu aquilo acontecer.
Olha, eu não acho que essa teoria seja mais maluca do que a nossa, disse Don a ele uma vez.
— É difícil, porque não recebemos mais notícia alguma — diz Don.
— Exatamente.
É, Don passou de alguém que votou contra a entrada de Gary na casa para o único morador que se senta com ele e conversa. E conversa. E conversa.
Ele é cético, pensa Malorie. É da natureza dele. E precisava de alguém com quem conversar. É só isso que essa situação significa. Ele é diferente de você. Será que você não entende?
No entanto, esses pensamentos não se sustentam. Não importa como Malorie veja as coisas, Gary e Don conversam sobre temas como histeria e a ideia de que as criaturas não causam danos a alguém que esteja preparado para vê-las. Ela sabe que Don abraçou há muito tempo um medo maior dos homens do que das criaturas. Ainda assim, ele fecha os olhos quando a porta da frente se abre e se fecha. Não olha pela janela. Nunca se comprometeu com a ideia de que as criaturas não podem nos ferir. Será que alguém como Gary poderia, enfim, convencê-lo disso?
Malorie quer conversar com Tom sobre aquilo. Quer chamá-lo confidencialmente e pedir que os impeça. Ou que ele pelo menos vá falar com os dois. Talvez suas palavras influenciem a conversa. Tornem tudo mais seguro.
Sim, ela quer falar com Tom sobre Don.
Divisão.
Com calafrios, ela atravessa a cozinha e olha para a sala de estar. Tom e Felix estão analisando um mapa no chão. Medem distâncias de acordo com a escala de quilometragem do mapa. Jules está adestrando os cachorros.
Pare. Comece de novo.
— Temos que calcular qual é a média de um passo para você — diz Felix.
— O que estão medindo? — pergunta Malorie.
Tom se vira para ela.
— A distância — responde ele. — Quantos passos dão um quilômetro.
Felix usa uma fita métrica para medir o pé de Tom.
— Se eu escutar música enquanto ando — sugere Tom —, posso andar no ritmo dela. Assim, os passos que a gente medir aqui serão mais ou menos os mesmos que eu vou dar lá fora.
— Como se estivesse dançando — diz Felix.
Malorie se vira e vê Olympia à pia da cozinha. Ela está lavando talheres. Malorie se junta a ela e continuar a lavar as roupas. Após quase quatro meses confinada naquela casa, Olympia perdeu um pouco do seu brilho. Sua pele está pálida. Os olhos, mais fundos.
— Está preocupada? — pergunta Olympia de repente.
— Com o quê?
— Com conseguir.
— Conseguir o quê?
— Sobreviver ao parto.
Malorie quer dizer à amiga que vai ficar tudo bem, mas não encontra as palavras certas.
Está pensando em Don.
— Eu sempre quis ter um bebê — diz Olympia. — Fiquei tão animada quando descobri. Senti que minha vida estava completa, sabe?
Não foi como Malorie se sentiu, mas ela diz que sim, que sabe.
— Ai, Malorie, quem vai fazer o nosso parto?
Malorie não sabe.
— Os outros da casa. Não vejo...
— Mas Tom nunca fez isso!
— Não. Mas ele foi pai.
Olympia encara as próprias mãos, submersas no balde.
— Quer saber? — diz Malorie, brincando. — A gente faz o parto uma da outra.
— Fazer o parto uma da outra? — repete Olympia, finalmente sorrindo. — Malorie, você é demais!
Gary entra na cozinha. Pega um copo de água do balde no balcão. Depois pega mais um copo. Malorie sabe que é para Don. Quando ele sai, uma música começa a vir da sala de estar.
Ela se inclina para a frente a fim de observar o cômodo. Tom segura o pequeno toca-fitas. É uma das fitas de George que está tocando. Felix, de quatro, mede os passos enquanto Tom anda no ritmo da música.
— O que eles estão fazendo? — pergunta Olympia.
— Acho que querem ir a um lugar específico — explica Malorie. — Estão tentando achar a melhor maneira de andar lá fora.
Malorie vai em silêncio até a porta da sala de jantar. Ao espiar lá dentro, vê Don e Gary, de costas para ela, sentados nas cadeiras da mesa. Estão falando baixinho.
Ela atravessa outra vez a cozinha. Quando entra na sala de estar, Tom está sorrindo. Tem uma coleira em cada mão. Os huskies estão brincando com elas, balançando os rabos.
Malorie só consegue pensar na discrepância entre as ações esperançosas e progressivas que se desenrolam na sala de estar e o tom conspiratório na sala de jantar.
Ela volta à pia e começa a enxaguar. Olympia está falando, mas Malorie pensa em outra coisa. Ela se inclina para a frente e consegue ver o ombro de Gary. Além dele, apoiado na parede, está o único item que o homem trouxe consigo do mundo exterior.
A mala.
Ele mostrou a todos o conteúdo dela quando entrou na casa. A pedido de Don. Mas será que ela deu uma boa olhada em tudo? Algum morador fez isso?
— E parem! — grita Tom.
Malorie se vira para ver que ele e os cachorros estão na entrada da cozinha. Os huskies se sentam. Tom os recompensa com carne crua.
Malorie volta a lavar roupa. Está pensando na mala.

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