Caixa de Pássaros - Capítulo 34

Malorie está no banheiro do segundo andar. É tarde e a casa está em silêncio. Os moradores estão dormindo.
Ela pensa na mala de Gary.
Tom pediu a ela que fosse uma líder na ausência dele. Mas a mala a incomoda. Assim como o interesse repentino de Don em Gary. Assim como tudo que Gary diz daquela maneira majestosa e artificial.
Bisbilhotar é errado. Quando pessoas são forçadas a viver juntas, a privacidade é essencial. Mas isso não é dever dela? Na ausência de Tom, não cabe a ela descobrir se suas suspeitas são verdadeiras?
Malorie presta atenção no corredor. Não há movimento algum na casa. Ao sair do banheiro, ela se vira para o quarto de Cheryl e vê a silhueta da moça, descansando. Ao dar uma espiada no quarto de Olympia, ouve um ronco leve. Em silêncio, Malorie desce a escada, apoiada no corrimão.
Ela entra na cozinha e acende a luz do fogão. É fraca e produz um zumbido baixo. Mas basta. Ao entrar na sala de estar, Malorie vê os olhos de Victor a encarando de volta. Felix dorme no sofá. O espaço no chão que costuma ser ocupado por Tom está vazio.
Passando pela cozinha, ela se aproxima da sala de jantar. A luz abafada do fogão é suficiente apenas para ela ver o corpo de Gary deitado no chão. Ele está de costas, dormindo.
É o que ela acha.
A mala está apoiada na parede, ao alcance da mão dele.
Devagar, Malorie atravessa a sala de jantar. O piso range sob o peso de seu corpo. Ela para e observa atentamente a boca aberta e barbada de Gary. Ele ronca um pouco, de forma lenta e regular. Prendendo a respiração, Malorie dá um último passo até o homem e para.
Acima dele, ela o examina com cautela, sem se mexer.
Então se ajoelha.
Gary bufa. O coração de Malorie dá um pulo. Ela espera.
Para pegar a mala, ela precisa estender a mão por cima do peito dele. Seu braço passa a centímetros da camisa de Gary. Seus dedos agarram a alça quando o homem ronca de novo.
Ela se vira.
Ele está olhando para ela.
Malorie fica paralisada. Analisa os olhos de Gary.
Expira devagar. Os olhos dele não estão abertos. As sombras a enganaram.
Rapidamente, ela ergue a mala, levanta-se e sai da sala.
Na porta do porão, Malorie para e escuta. Não ouve movimento algum vindo da sala de jantar. A porta se abre devagar e sem fazer barulho, mas Malorie não consegue evitar o rangido das dobradiças. Parece mais alto do que de costume. Como se a casa toda estivesse rangendo lentamente.
Com apenas espaço suficiente para entrar, ela desliza para dentro. A casa fica em silêncio de novo.
Ela desce devagar a escada até o chão de terra.
Está nervosa. Leva tempo demais para encontrar a cordinha que acende a luz. Quando consegue, o cômodo é inundado por uma luz amarela brilhante. Brilhante demais. Parece que vai acordar Cheryl, que dorme dois andares acima dali.
Observando ao redor, ela espera.
Consegue ouvir a própria respiração cansada. Nada mais.
Seu corpo dói. Ela precisa descansar. Mas, agora, só quer saber o que Gary trouxe com ele.
Andando até o banquinho de madeira, ela se senta.
Abre a mala.
Dentro, vê uma escova de dentes gasta.
Meias.
Camisetas.
Uma camisa de botão.
Desodorante.
E papéis. Um caderno.
Malorie olha para a porta do porão. Tenta ouvir passos. Não há nenhum. Pega o caderno debaixo das roupas e põe a mala no chão.
O caderno tem uma capa azul, bem limpa. As pontas não estão retorcidas. É como se Gary o tivesse guardado, preservado, nas melhores condições que podia.
Ela o abre.
E lê.
A letra manuscrita é tão precisa que a assusta. É desenhada de forma meticulosa. Quem quer que tenha escrito fez aquilo com muita paixão. Com orgulho. Enquanto folheia as páginas, ela vê que umas sentenças foram redigidas da forma tradicional, da esquerda para a direita, outras na direção contrária, da direita para a esquerda. Algumas, no meio do caderno, começam no topo da página e descem. No fim, as frases giram em espirais precisas, ainda perfeitas, criando padrões e desenhos estranhos com palavras.
Conhecer o teto da mente humana é saber o poder total dessas criaturas. Se for uma questão de compreensão, com certeza então o resultado de qualquer encontro com elas deve ser muito diferente para cada homem. O meu teto é diferente do seu. Muito diferente dos macacos desta casa. Os outros, engolfados como estão nessa histeria hiperbólica, são mais suscetíveis às regras que aplicamos às criaturas. Em outras palavras, esses simplórios, com seus intelectos infantis, não vão sobreviver. Mas alguém como eu, bem, já comprovei meu argumento.
Malorie vira a página.
Que tipo de homem se acovarda quando o fim do mundo chega? Quando seus irmãos estão se matando, quando as ruas residenciais dos Estados Unidos estão infestadas de assassinatos... Que tipo de homem se esconde atrás de cobertores e vendas? A resposta é A MAIORIA dos homens. Disseram a eles que poderiam enlouquecer. Então eles enlouquecem.
Malorie olha para a escada do porão. A luz do fogão é visível através do pequeno espaço na fresta da porta. Ela acha que deveria tê-la apagado. Pensa em fazer isso agora. Então vira a página.
Fazemos isso com nós mesmos fazemos isso com nós mesmos FAZEMOS ISSO com NÓS MESMOS. Em outras palavras (guarde isto!): O HOMEM É A CRIATURA QUE ELE TEME.
É o caderno de Frank. Mas por que está com Gary?
Porque foi ele que escreveu, é claro.
Porque, Malorie sabe, Frank não arrancou as cortinas da antiga casa de Gary.
Foi Gary quem fez isso.
Malorie se levanta, o coração disparado.
Tom não está em casa. Tom está caminhando cinco quilômetros até a casa dele.
Ela encara a base da porta do porão. Vê a luz do fogão. Espera que a sombra de sapatos a obscureçam de repente. Procura uma arma nas prateleiras. Se ele vier, com o que pode matá-lo?
Mas nenhum sapato esconde a luz e Malorie aproxima o caderno do rosto. E então lê.
Falando racionalmente, com o objetivo de provar minha teoria a eles, não tenho escolha. Escreverei isso mil vezes até me convencer a fazê-lo. Duas mil. Três. Esses homens se negam a conversar. Apenas provas os convencerão. Mas como provarei a eles? Como farei com que acreditem?
Vou retirar as cortinas e destrancar as portas.
Nas margens estão anotações numeradas e os números correspondentes foram escritos com cuidado na parte de cima. Há uma nota 2.343. Esta é a 2.344. Interminável, incansável, brutal.
Malorie vira a página.
Um barulho vem do andar de cima.
Ela olha para a porta. Está com medo de piscar, de se mover. Então espera e observa.
Com os olhos na porta, ela pega a mala e guarda o caderno de volta embaixo das coisas de Gary. Está do lado certo? Era assim que estava antes?
Ela não sabe. Ela não sabe.
Malorie fecha a mala e puxa a cordinha da lâmpada.
Fecha os olhos e sente a terra fria sob seus pés. Volta a abrir os olhos. A escuridão absoluta é interrompida apenas pela luz do fogão que passa pela fresta sob a porta.
Ela a observa e espera.
Atravessa o porão, seus olhos se acostumando à escuridão enquanto sobe a escada com cuidado e pressiona a orelha na porta.
Fica ouvindo, respirando de forma irregular. A casa está em silêncio de novo.
Gary está parado na outra ponta da cozinha. Está observando a porta do porão. Quando você a abrir, ele vai lhe cumprimentar.
Ela espera. E espera. E não escuta nada.
Abre a porta. As dobradiças rangem.
Com a mala na mão, os olhos de Malorie vasculham a cozinha. O silêncio é alto demais.
Mas não há ninguém ali. Ninguém está esperando por ela.
Com a mão na barriga, Malorie se espreme pelo batente da porta e a fecha.
Olha para a sala de estar. Para a sala de jantar.
Para a sala de estar.
Para a de jantar.
Na ponta dos pés, passa pela cozinha e entra, por fim, na sala de jantar.
Gary ainda está deitado de costas. O peito dele sobe e desce. Ele resmunga baixinho.
Ela se aproxima. Ele se mexe. Ela espera.
Ele se mexeu...
Foi apenas o braço.
Malorie observa Gary, encarando seu rosto, seus olhos fechados. Depressa, ela se ajoelha ao lado dele, a centímetros de sua pele, e põe a mala apoiada na parede de novo.
Era deste lado que estava?
Ela a deixa ali. Levanta-se e sai correndo da sala. Na cozinha, sob o brilho da luz, os olhos de alguém encontram os dela.
Malorie fica paralisada.
É Olympia.
— O que você está fazendo? — sussurra Olympia.
— Nada — responde Malorie, ofegante. — Achei que tivesse deixado alguma coisa aqui.
— Tive um sonho horrível — afirma.
Malorie anda até ela, com os braços estendidos. Leva a amiga de volta para o andar de cima. As duas sobem a escada juntas. Já no topo, Malorie olha para baixo.
— Preciso contar ao Tom — diz.
— Sobre o meu sonho?
Malorie olha para Olympia e balança a cabeça.
— Não. Não. Desculpe. Não.
— Malorie?
— Oi.
— Você está bem?
— Olympia. Preciso do Tom.
— Bem, ele foi embora.
Malorie encara o pé da escada. A luz do fogão ainda está acesa. Parte dela se espalha pela sala de estar, de forma que se alguém entrasse na cozinha, vindo da sala de jantar, conseguiria ver a sombra das duas.
Ansiosa, ela observa intensamente o cômodo mal iluminado. Esperando. Pela sombra.
Certa de que ela surgirá.
Enquanto observa, pensa no que Olympia acabou de dizer.
Tom foi embora.
Ela imagina a casa como se fosse uma grande caixa. Quer sair daquela caixa. Tom e Jules, mesmo do lado de fora, ainda estão naquela caixa. O planeta inteiro está trancado nela. O mundo está confinado à mesma caixa de papelão que abriga os pássaros do lado de fora.
Malorie entende que Tom está procurando uma maneira de abrir a tampa. Busca uma saída.
Mas ela se pergunta se não há outra tampa acima daquela, e depois mais uma.
Encaixotados, pensa. Para sempre.


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