Caixa de Pássaros - Capítulo 35

Faz uma semana que Tom e Jules saíram para percorrer os cinco quilômetros com os huskies.
Agora, mais do que tudo, Malorie quer os dois em casa. Quer ouvir uma batida na porta e sentir o alívio de tê-los de volta. Quer saber o que encontraram e ver o que trouxeram. Quer contar a Tom o que leu no porão.
Não voltou a dormir na noite anterior. Na escuridão do seu quarto, pensou apenas no caderno de Gary. Ela está no hall de entrada agora. Parece se esconder do resto da casa.
Não pode contar a Felix. Ele é capaz de fazer alguma coisa. Ele diria algo. Malorie quer que Tom e Jules estejam em casa caso ele faça isso. Felix precisaria dos dois.
Quem sabe do que Gary é capaz. O que ele fez.
Não pode conversar com Cheryl. Ela é temperamental e forte. Fica furiosa. Faria alguma coisa antes mesmo de Felix.
Olympia só ficaria com mais medo.
Ela não pode falar com Gary. Não vai. Não sem a presença de Tom.
No entanto, apesar da transformação dele, apesar do seu humor imprevisível, Malorie acha que talvez possa conversar com Don.
Há bondade nele, pensa. Sempre houve.
Gary tem sido o diabinho no ombro de Don há semanas. Don precisava de alguém assim na casa. Alguém que vê o mundo de um jeito mais parecido com o dele. No entanto, será que o ceticismo de Don não poderia ser útil nessa situação? Será que ele não imaginou, depois de todas as conversas que teve com Gary, que pode haver algo errado com o recém-chegado?
Gary dorme com a mala ao alcance da mão. Ele se preocupa com ela. Ele se importa e acredita no que está escrito ali.
Tudo naquele novo mundo é complicado, pensa ela, mas nada é tão difícil quanto a descoberta do caderno de Gary durante a ausência de Tom.
Ele pode ficar ausente por um bom tempo.
Pare.
Para sempre.
Pare.
Ele pode estar morto. Podem tê-lo matado na rua, bem ali perto de casa. O homem pelo qual você tanto espera pode estar morto há uma semana, a apenas um gramado de distância.
Não está. Ele vai voltar.
Talvez.
Vai.
Talvez.
Mapearam tudo com Felix.
O que Felix sabe?
Fizeram tudo juntos. Tom não correria o risco se não soubesse que tinha uma chance real de conseguir.
Lembra-se do vídeo a que George assistiu? Tom se parece muito com George.
PARE!
Mas parece. Ele idolatra o cara. E os cachorros?
Não sabemos se os cães são afetados.
Não. Mas podem ser. Imagine como seria. Um cachorro enlouquecendo.
Por favor... não.
Pensamentos necessários. Visões necessárias. Tom pode não voltar.
Ele vai ele vai ele vai...
Mas, se não voltar, você vai ter que contar a outra pessoa.
Tom vai voltar.
Faz uma semana.
ELE VAI VOLTAR!
Você não pode contar a Gary. Fale com alguém primeiro.
Don.
Não. Não. Com ele, não. Felix. Don vai matar você.
O quê??
Don mudou, Malorie. Está diferente. Não seja tão inocente.
Ele não machucaria a gente.
Machucaria, sim. Mataria todos vocês com o machado do jardim.
PARE!!
Ele não liga para a vida. Mandou você cegar seu bebê, Malorie.
Ele não machucaria a gente.
Machucaria. Fale com Felix.
Felix vai contar para todo mundo.
Diga a ele para não fazer isso. Converse com Felix. Tom pode não voltar.
Malorie sai do hall. Cheryl e Gary estão na cozinha. Ele está à mesa, sentado, usando uma concha para tirar ervilhas de uma lata.
— Boa tarde — diz ele, daquela maneira que o faz parecer responsável pela tarde ser boa.
Malorie acha que ele percebeu. Acha que ele sabe.
Ele estava acordado ele estava acordado ele estava acordado.
— Boa tarde — responde ela.
Malorie anda até a sala de estar, deixando-o para trás.
Felix está sentado ao lado do telefone. O mapa está aberto na mesa lateral.
— Não entendo — diz, confuso.
Felix não parece bem. Não tem comido direito. As garantias que deu a Malorie uma semana antes não existem mais.
— Faz tanto tempo, Malorie. Sei que Tom saberia o que fazer lá fora... mas já faz tanto tempo.
— Você precisa pensar em outra coisa — afirma Cheryl, enfiando a cabeça para dentro da sala. — É sério, Felix. Pense em outra coisa. Ou simplesmente saia sem uma venda. De um jeito ou de outro, você está ficando maluco.
Felix exala o ar ruidosamente e passa a mão pelo cabelo.
Ela não pode contar a Felix. Ele está perdendo alguma coisa. Perdeu alguma coisa. Seus olhos estão sem brilho. Perdeu a sensibilidade, a racionalidade. A força.
Sem dizer nada, Malorie o deixa lá. Passa por Don no corredor. As palavras, o que descobriu no porão, ganham vida dentro dela. E quase conta.
Don, Gary não é legal. É perigoso. Guarda o caderno de Frank na mala.
O quê, Malorie?
É isso mesmo que acabei de dizer.
Você foi bisbilhotar? Vasculhou as coisas de Gary?
Sim.
Por que está me dizendo isso?
Don, só preciso contar a alguém. Você entende, não é?
Por que simplesmente não perguntou ao Gary? Ei, Gary!
Não. Ela não pode contar a Don. Don também perdeu alguma coisa. Ele pode ficar violento. Assim como Gary.
Um empurrão, pensa ela, e você perde o bebê.
Malorie imagina Gary no topo da escada que leva ao porão. O corpo dela ferido, sangrando, encolhido ao pé dos degraus.
Gosta de ler no porão, NÃO É?? Então morra aí embaixo com seu filho.
Atrás de si, Malorie ouve todos os moradores na sala de estar. Cheryl conversa com Felix.
Gary fala com Don.
Malorie se vira para as vozes e se aproxima da sala.
Vai contar a todos.
Quando entra no cômodo, seu corpo parece ser feito de gelo. Está derretendo. Como se pedaços dela mesma caíssem e afundassem sob a pressão insuportável do que está por vir.
Cheryl e Olympia estão no sofá. Felix espera ao lado do telefone. Don senta na poltrona.
Gary está de pé, encarando as janelas cobertas.
Quando Malorie abre a boca, Gary olha devagar por cima do ombro e encontra os olhos dela.
— Malorie — chama ele, objetivo —, quer dizer alguma coisa?
De repente, ela percebe com clareza que todos a encaram. Esperam que ela fale.
— É, Gary — responde ela. — Quero, sim.
— O que é? — pergunta Don.
As palavras estão presas em sua garganta. Elas sobem como se tivessem as pernas de uma centopeia, procurando seus lábios, buscando, por fim, uma saída.
— Alguém se lembra da história que Gary...
Malorie para. Ela e todos os outros olham para os cobertores.
Os pássaros estão piando.
— É Tom — diz Felix, desesperado. — Só pode ser!
Gary encara de novo os olhos de Malorie. Há uma batida na porta da frente.
Os moradores agem depressa. Felix corre para a porta. Malorie e Gary permanecem parados.
Ele sabe ele sabe ele sabe ele sabe ele sabe.
Quando Tom chama, Malorie está tremendo de medo.
Ele sabe.
Então, ao ouvir a voz de Tom, Gary a deixa ali e vai até o hall de entrada.
Depois de fazerem as perguntas de praxe e de todos fecharem os olhos, Malorie ouve a porta da frente se abrir. Uma lufada de ar frio entra e, com ela, a noção de quão perto Malorie esteve de confrontar Gary sem a presença de Tom.
Patas de cães tocam o piso do hall. Botas. Algo atinge o batente. A porta se fecha depressa.
Há o som de vassouras arranhando as paredes. Tom fala. E a voz dele é uma salvação.
— O meu plano era ligar para vocês da minha casa. Mas a porra do telefone não estava funcionando.
— Tom — diz Felix, com desespero, apesar da fraqueza. — Eu sabia que vocês iam conseguir. Eu sabia!
Ao abrir os olhos, Malorie não está pensando em Gary. Não está visualizando as letras desenhadas com perfeição que habitam a mala.
Apenas vê que Tom e Jules estão em casa de novo.
— Invadimos um mercado — diz Tom. As palavras parecem impossíveis. — Alguém já tinha passado por lá. Mas conseguimos muitas coisas boas.
Ele parece cansado, mas bem.
— Os cachorros funcionaram — explica. — Guiaram a gente. — Está orgulhoso e feliz. — Mas peguei uma coisa na minha casa que espero que nos ajude ainda mais.
Felix o auxilia a tirar a mochila das costas. Tom a abre e tira algo que deixa cair no piso do hall. É uma lista telefônica.
— Vamos ligar para todos os números que estão aqui — diz Tom. — Para cada um. E alguém vai atender.
É só uma lista telefônica, mas Tom já a transformou numa fonte de inspiração.
— Agora — pede ele —, vamos comer.
Animados, os outros arrumam a sala de jantar. Olympia pega os talheres. Felix enche os copos com água do balde.
Tom voltou.
Jules voltou.
— Malorie! — grita Olympia. — Tem carne de caranguejo enlatada!
Malorie, presa em algum lugar entre dois mundos, entra na cozinha e começa a ajudar com o jantar.

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