Caixa de Pássaros - Capítulo 37

Pela primeira vez desde chegou à casa, Malorie sabe de algo que os outros não sabem.
Tom e Jules acabaram de voltar. Enquanto os moradores preparavam o jantar, Tom levou o novo estoque de enlatados para o porão. Malorie foi encontrá-lo lá embaixo. Talvez Gary tenha guardado o caderno porque queira estudar o que Frank escreveu. Ou talvez ele mesmo tenha escrito tudo aquilo. Mas Tom precisava saber. Nesse momento.
À luz do porão, ele parecia cansado, mas vitorioso. Seu cabelo claro estava sujo. O rosto, mais envelhecido do que da primeira vez em que ela esteve ali com ele. Emagrecera.
Metodicamente, retirava latas da mochila dele e da de Jules e as colocava nas prateleiras.
Quando começou a falar sobre como foi entrar no mercado, do fedor de tanta comida estragada, Malorie encontrou sua oportunidade.
No entanto, quando estava prestes a falar, a porta do porão se abriu.
Era Gary.
— Gostaria de ajudar se puder — disse, do topo da escada.
— Tudo bem — respondeu Tom. — Desça aqui então.
Malorie saiu assim que os pés de Gary tocaram no chão de terra.
Estão todos sentados à mesa de jantar. E Malorie continua esperando uma oportunidade.
Tom e Jules descrevem com calma a semana que tiveram. Os fatos são incríveis, mas a cabeça de Malorie está concentrada em Gary. Ela tenta agir normalmente. Ouve o que os amigos dizem. Cada minuto que passa é mais um em que Tom não sabe que Gary pode ser uma ameaça para os outros.
A sensação é de que ela e os demais estão invadindo o espaço de Gary. Como se Gary e Don tivessem a decência de convidá-los à sala de jantar deles, o lugar favorito dos dois para ficarem sussurrando. Ambos haviam passado tanto tempo ali que o cômodo estava com o cheiro deles. Será que teriam se juntado ao grupo se o jantar fosse servido na sala de estar?
Malorie acha que não.
Enquanto Tom descreve como foi andar cinco quilômetros vendado, Gary mostra-se amável, simpático, faz perguntas. E, toda vez que ele abre a boca, Malorie quer gritar e pedir que pare. Conte primeiro a verdade, quer dizer.
No entanto, ela espera.
— Então você diria — começa a perguntar Gary, a boca cheia de carne de caranguejo — que agora está convencido de que os animais não são afetados?
— Não, eu não diria isso — responde Tom. — Ainda não. Talvez a gente não tenha passado por nada que eles pudessem ver.
— Isso é pouco provável — afirma Gary.
Malorie quase grita.
Tom então anuncia que tem outra surpresa para todos.
— A sua mochila parece uma verdadeira caixinha de surpresas — comenta Gary, sorrindo.
Quando Tom volta, está carregando uma pequena caixa marrom. De dentro dela, tira oito buzinas de bicicleta.
— Pegamos isso no mercado — diz. — Na seção de brinquedos.
Ele as distribui.
— A minha tem meu nome escrito — diz Olympia.
— Todas têm — explica Tom. — Eu escrevi, vendado, com um marcador.
— Para quê? — indaga Felix.
— Estamos rumando para uma vida na qual passaremos mais tempo fora desta casa — responde Tom, sentando-se. — Podemos nos comunicar com isso.
De repente, Gary aperta a buzina. Soa como um ganso. Então a sala parece ter sido invadida por um bando de gansos, quando todos apertam as buzinas caoticamente.
As olheiras de Felix se esticam quando ele sorri.
— E isto — diz Tom — é o grand finale.
Ele enfia a mão na mochila e tira uma garrafa. É de rum.
— Tom! — exclama Olympia.
— Essa era a verdadeira razão pela qual eu queria voltar para minha casa — brinca ele.
Malorie, ao ver os amigos rirem, ao ver seus rostos sorridentes, não consegue mais aguentar.
Ela se levanta e bate as palmas das mãos na mesa.
— Vasculhei a mala do Gary — diz. — Encontrei o caderno sobre o qual ele nos contou. O que fala sobre arrancar os cobertores das janelas. O que ele disse que Frank levou embora.
A sala fica em silêncio. Todos os outros olham para Malorie, que está com as bochechas vermelhas de calor. O suor cobre sua testa.
Tom, ainda segurando a garrafa de rum, analisa o rosto de Malorie. Então se vira lentamente para Gary.
— Gary?
Ele olha para a mesa.
Ele está ganhando tempo, pensa Malorie. O babaca está ganhando tempo para pensar.
— Bem — começa Gary —, não sei o que dizer.
— Você revistou as coisas de alguém? — pergunta Cheryl, levantando-se.
— Sim. Revistei. Sei que isso viola as regras da casa. Mas precisamos conversar sobre o que encontrei.
O cômodo fica em silêncio de novo. Malorie ainda está de pé. Ela se sente elétrica.
— Gary? — insiste Jules.
Ele se apoia no encosto da cadeira. Respira fundo. Cruza os braços. Depois os descruza.
Parece sério. Irritado. Então sorri. Levanta-se e vai até a mala. Pega-a e a põe na mesa.
Os outros olham para a mala, mas Malorie observa o rosto de Gary.
Ele abre a mala, então tira o caderno.
— É — afirma Gary. — Estou mesmo com o caderno. Estou com o caderno do Frank.
— Do Frank? — repete Malorie.
— É — afirma Gary, virando-se para ela. Depois, mantendo a forma teatral e cavalheiresca de falar, acrescenta: — Sua fuxiqueirazinha.
De repente, todos começam a falar ao mesmo tempo. Felix quer ver o caderno. Cheryl quer saber quando Malorie o encontrou. Don aponta o dedo para Malorie e grita.
Em meio ao caos, Gary, ainda olhando para Malorie, diz:
— Sua vagabunda grávida e paranoica.
Jules o ataca. Os cães latem. Tom se mete entre os dois. Berra para que todos parem. Que parem com isso. Malorie não se mexe. Ela encara Gary.
Jules cede.
— Ela precisa explicar isso agora mesmo — explode Don.
Ele se levantou num pulo e está apontando com raiva para Malorie.
Tom olha para ela.
— Malorie? — pede.
— Não confio nele.
Os moradores esperam mais explicações.
— O que está escrito no caderno? — pergunta Olympia.
— Olympia! — exclama Malorie. — O caderno está bem aí. Leia você mesma, porra.
Mas Felix já o pegou.
— Por que você guardaria uma lembrança do homem que pôs a sua vida em risco? — questiona ele.
— É exatamente por isso que guardo o caderno — diz Gary, insistente. — Queria saber o que Frank pensava. Morei com ele por semanas e nunca suspeitei de que o cara seria capaz de tentar nos matar. Talvez eu tenha guardado o caderno como um aviso. Para garantir que eu não começaria a pensar como ele. Para garantir que nenhum de vocês começaria a pensar assim também.
Malorie balança a cabeça vigorosamente.
— Você nos disse que Frank levou o caderno — afirma ela.
Gary começa a responder. Então para.
— Não tenho uma boa resposta para isso — diz. — Talvez eu tenha achado que vocês ficariam com medo se soubessem que eu o tinha trazido. Podem pensar o que quiser, mas eu gostaria que confiassem em mim. Não a culpo por revistar a mala de um estranho, dadas as circunstâncias em que todos estamos vivendo. Mas pelo menos deixe que eu me defenda.
Tom está dando uma olhada no caderno. As palavras se arrastam sob seus olhos.
Don o pega em seguida. Sua expressão irritada aos poucos se torna confusa.
Então, como se Malorie soubesse de algo maior do que qualquer votação pudesse resolver, ela aponta para Gary e diz:
— Você não pode mais ficar aqui. Precisa ir embora.
— Malorie — pede Don, com pouca convicção —, por favor. O cara está se explicando.
— Don — diz Felix —, você ficou maluco, porra?
Com o caderno ainda nas mãos, Don se vira para Gary.
— Gary, você com certeza sabe como isso parece ruim.
— Claro. É claro que sim.
— Essa não é a sua letra? Pode provar isso?
Gary pega uma caneta da mala e escreve o próprio nome numa página do caderno.
Tom olha para a palavra por um segundo.
— Gary — começa ele —, o restante de nós precisa conversar. Pode ficar sentado aqui se quiser. Vai nos escutar da outra sala de qualquer maneira.
— Entendo — afirma Gary. — Você é o capitão desse navio. Farei o que quiser.
Malorie quer bater nele.
— Tudo bem — diz Tom com calma para os outros. — O que vamos fazer?
— Ele tem que ir embora — afirma Cheryl, sem hesitar.
Então Tom começa a votação.
— Jules?
— Ele não pode ficar aqui, Tom.
— Felix?
— Minha vontade é dizer não. É dizer que não podemos votar para expulsar alguém. Mas não há razão alguma para ele ter esse caderno.
— Tom — diz Don —, desta vez não estamos votando para que alguém que queira sair vá embora. Estamos decidindo se vamos forçar alguém a sair. Quer isso na sua consciência?
Tom se vira para Olympia.
— Olympia?
— Tom — pede Don.
— Você já votou, Don.
— Não podemos forçar alguém a sair, Tom.
O caderno continua na mesa. Aberto. As palavras estão sendo exibidas em sua perfeição.
— Sinto muito, Don — diz Tom.
Don se vira para Olympia, torcendo.
Mas ela não responde. E não importa. A casa falou.
Gary se levanta. Pega o caderno e o põe de volta na mala. Fica de pé atrás da cadeira e ergue o queixo. Respira fundo. Assente com a cabeça.
— Tom, será que posso ficar com um dos seus capacetes? De um vizinho para outro — pede ele.
— É claro — responde Tom, baixinho.
Então ele sai da sala. Volta com um capacete e um pouco de comida. Entrega tudo a Gary.
— É simplesmente assim que funciona, então? — pergunta Gary, ajustando a tira do capacete.
— Isso é horrível — lamenta Olympia.
Tom ajuda Gary a pôr o capacete. Depois o leva até a porta da frente. Os outros, formando um grupo, os seguem.
— Acho que todas as casas deste quarteirão estão vazias — explica Tom. — Pelo que Jules e eu descobrimos. Pode escolher qualquer uma.
— É — diz Gary, abrindo um sorriso nervoso sob a venda. — Imagino que isso seja um incentivo.
Malorie, ardendo por dentro, observa Gary cuidadosamente.
Quando fecha os olhos, quando todos fecham, ela ouve a porta da frente se abrir e se fechar. E, no meio-tempo, acredita ter ouvido os passos de Gary no gramado. Ao abrir os olhos de novo, Don não está mais parado no hall com os outros. Ela acha que ele foi embora com Gary. Então ouve algo se mover na cozinha.
— Don?
Ele resmunga. Ela sabe que é ele.
Don murmura algo antes de abrir e bater a porta do porão.
Outro palavrão. Direcionado a Malorie.
Enquanto os outros se dispersam em silêncio pela casa, ela entende a severidade do que fizeram.
Parece que Gary está em todos os cantos lá fora.
Ele foi banido. Excluído.
Expulso.
O que é pior?, pergunta a si mesma. Tê-lo aqui, onde poderíamos ficar de olho nele, ou tê-lo lá fora, onde não temos como fazer isso?

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Atenção: para postar um comentário, escolha Nome/Url. Se quiser insira somente seu nome.

Please, no spoilers!

Expresse-se:
(◕‿◕✿) 。◕‿◕。 ●▽●

⊱✿◕‿◕✿⊰(◡‿◡✿)(◕〝◕) ◑▂◐ ◑0◐

◑︿◐ ◑ω◐ ◑﹏◐ ◑△◐ ◑▽◐ ●▂● 

●0● ●︿● ●ω● ●﹏● ●△● ●▽●

Topo