Caixa de Pássaros - Capítulo 40

Esta é a noite que mais tarde Malorie vai considerar como a última que passou na casa, apesar de ter vivido pelos quatro anos seguintes ali. Sua barriga parece tão grande no espelho que a assusta. Parece que poderia muito bem cair de seu corpo. Ela conversa com o bebê.
— Você vai sair daí um dia desses. Há tantas coisas que quero lhe dizer e tantas que não quero.
Desde a infância, o cabelo preto de Malorie nunca esteve tão comprido. Shannon costumava ter inveja dele.
Você parece uma princesa. Eu pareço a irmã da princesa, diria ela.
Por sobreviver à base de enlatados e água do poço, ela consegue ver algumas costelas, apesar da saliência na barriga. Seus braços estão finos como gravetos. O rosto está magro, os traços, marcados. Os olhos, mais fundos, chamam atenção no espelho, até mesmo a da própria Malorie.
Os moradores da casa estão reunidos na sala de estar, no andar de baixo. Mais cedo, eles ligaram para os últimos nomes da lista telefônica. Não há mais nenhum. Felix disse que fizeram quase cinco mil ligações. Deixaram dezessete mensagens. E pronto. Mas Tom está animado.
Enquanto examina o corpo no espelho, Malorie ouve um dos cães rosnar lá embaixo.
Parece Victor. Ela vai para o corredor e escuta.
— O que foi, Victor? — Ela ouve Jules dizer.
— Ele não está gostando disso — afirma Cheryl.
— Do quê?
— Não está gostando da porta do porão.
O porão. Não é segredo para ninguém que Don não quer falar com os outros moradores da casa. Quando Tom explicou seu plano de ligar para os números da lista telefônica e delegou algumas letras para cada um do grupo, Don se recusou a participar, mencionando sua “descrença” no processo como um todo. Nas sete semanas que se passaram desde que Gary foi expulso, Don não se juntou aos outros durante as refeições. Ele mal conversa.
Malorie ouve uma cadeira ser arrastada no chão da cozinha.
— Tudo bem, Victor? — pergunta Jules.
Malorie ouve a porta do porão abrir, e em seguida Jules grita.
— Don! Você está aí?
— Don! — repete Cheryl.
Ele dá uma resposta abafada. A porta volta a se fechar.
Curiosa e ansiosa, Malorie puxa a blusa para cobrir a barriga e desce a escada.
Quando entra na cozinha, vê Jules ajoelhado, acalmando Victor, que agora choraminga e anda de um lado para outro. Malorie olha para a sala de estar. Lá está Tom, encarando as janelas cobertas.
Ele está tentando ouvir os pássaros, pensa. Victor está deixando Tom assustado.
Como se sentisse os olhos de Malorie nele, Tom se vira na direção da amiga. O cachorro choraminga atrás dela.
— Jules — diz ele, entrando na cozinha —, o que você acha que é? O que está assustando Victor?
— Não sei. Obviamente alguma coisa o deixou atordoado. Ele estava arranhando a porta do porão mais cedo. Don está lá embaixo. Mas é um sacrifício tentar conversar com ele. E é pior ainda quando tentamos fazê-lo subir.
— Tudo bem — conclui Tom. — Vamos lá embaixo então.
Quando Jules olha para ele, Malorie vê medo no rosto de Tom.
O que Gary fez com eles?
Ele injetou desconfiança no grupo, pensa Malorie. Jules está com medo de confrontar Don.
— Vamos — pede Tom. — Já está hora de conversar com ele.
Jules se levanta e põe a mão na maçaneta do porão. Victor começa a rosnar de novo.
— Fique aqui, garotão — diz Jules.
— Não — retruca Tom. — Vamos levar Victor com a gente.
Jules hesita, então abre a porta do porão.
— Don? — grita Tom.
Ninguém responde.
Tom desce primeiro. Jules e Victor vão em seguida. Malorie os segue.
Apesar de a luz estar acesa, parece escuro ali embaixo. De início, Malorie acha que estão sozinhos. Ela esperava ver Don sentado no banquinho. Lendo. Pensando. Escrevendo. Está prestes a dizer que não há ninguém ali, mas então solta um berro.
Don está de pé ao lado da tapeçaria fina, encostado na máquina de lavar, nas sombras.
— O que deu no cachorro? — pergunta ele, baixinho.
Tom responde com cautela:
— A gente não sabe, Don. Parece que ele está incomodado com alguma coisa aqui embaixo. Está tudo bem?
— O que quer dizer com isso?
— Você tem ficado mais aqui do que a gente, nos últimos tempos — afirma Tom. — Só quero saber se está tudo bem.
Quando Don dá um passo à frente, na direção da luz, Malorie arqueja. Ele não parece bem.
Pálido. Magro. Seu cabelo negro está sujo e ralo. As feições do seu rosto parecem ter a mesma textura de argila. As olheiras sob seus olhos fazem parecer que ele absorveu parte da escuridão na qual está imerso há semanas.
— Ligamos para toda a lista telefônica — explica Tom, tentando levar alguma luz para aquele porão úmido e escuro, pensa Malorie.
— Deu em alguma coisa?
— Ainda não. Mas quem sabe?
— É. Quem sabe.
Então todos ficam em silêncio. Malorie entende que a divisão que sentiu crescer entre eles agora está completa. Estão vendo se Don está bem. Verificando se Don está são. Como se ele estivesse morando em outro lugar. Consertar aquela situação parece impossível.
— Você quer subir? — pergunta Tom, com delicadeza.
Malorie sente uma onda de tontura. Leva uma das mãos à barriga.
O bebê. Ela não deveria ter descido a escada do porão. Mas está tão preocupada com Don quanto os outros.
— Para quê? — retruca Don, por fim.
— Não sei — diz Tom. — Pode fazer algum bem a você ficar um pouco com a gente esta noite.
Don está assentindo com a cabeça, devagar. Ele lambe os lábios. Olha ao redor. Para as prateleiras, as caixas, o banquinho em que Malorie se sentou, sete semanas antes, quando foi ler o caderno de Gary.
— Está bem — sussurra Don. — Tudo bem, então.
Tom põe uma das mãos no ombro de Don, que começa a chorar. Ele leva a mão aos olhos para disfarçar.
— Desculpe, cara — diz. — Estou tão confuso, Tom...
— Todos estamos — afirma Tom, baixinho. — Vamos lá para cima. Todo mundo vai adorar ver você.
Na cozinha, Tom tira a garrafa de rum do armário. Serve uma dose para si mesmo e outra para Don. Os dois fazem um brinde, batendo os copos com cuidado, depois bebem.
Por um instante, é como se nada tivesse mudado e nem fosse mudar. Os moradores da casa estão reunidos de novo. Malorie não consegue se lembrar da última vez em que viu Don assim, sem Gary agachado ao seu lado, o diabinho em seu ombro, sussurrando filosofias, descolorindo sua mente com a mesma linguagem que ela encontrou no caderno.
Victor se esfrega nas pernas de Malorie quando volta para a cozinha. Observando-o, ela sente uma nova onda de tontura.
Preciso me deitar, pensa.
— Então deite-se — diz Tom.
Malorie não tinha percebido que dissera aquilo em voz alta.
No entanto, ela não quer se deitar. Quer se sentar com Tom, Don e os outros e acreditar, por um instante, que a casa ainda pode ser o que deveria ser. Um lugar onde estranhos se encontram, juntam forças e reúnem ânimo para enfrentar o mundo exterior, impossível e mutante.
Porém, aquilo tudo é demais. Uma terceira onda de náusea a invade e Malorie, de pé, tropeça. Jules surge, de repente, ao seu lado. Ele a ajuda a subir a escada. Enquanto entra no quarto e se deita, ela percebe que os outros também estão ali. Todos eles. Don também. Estão lhe observando, preocupados com ela. Encarando. Perguntam se ela está bem. Precisa de alguma coisa? Água? Um pano molhado? Ela diz que não, ou acha que diz que não, pois está desmaiando. Enquanto adormece, ouve um barulho vindo pela passagem de ar. É novamente o som de Victor, rosnando, sozinho, na cozinha.
A última coisa que ela vê antes de fechar os olhos são os moradores agrupados. Eles a observam de perto. Olham para a barriga dela.
Sabem que chegou a hora.
Victor rosna de novo. Don olha para a escada.
Jules sai do quarto.
— Obrigada, Tom — diz Malorie. — Pelas buzinas de bicicleta.
Ela pensa ter ouvido a caixa de pássaros bater levemente na casa. Mas é apenas o vento na janela.
Então adormece. E sonha com os pássaros.

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Atenção: para postar um comentário, escolha Nome/Url. Se quiser insira somente seu nome.

Please, no spoilers!

Expresse-se:
(◕‿◕✿) 。◕‿◕。 ●▽●

⊱✿◕‿◕✿⊰(◡‿◡✿)(◕〝◕) ◑▂◐ ◑0◐

◑︿◐ ◑ω◐ ◑﹏◐ ◑△◐ ◑▽◐ ●▂● 

●0● ●︿● ●ω● ●﹏● ●△● ●▽●

Topo