Caixa de Pássaros - Capítulo 41

Os pássaros nas árvores estão inquietos. Parece que milhares de galhos estão balançando ao mesmo tempo. Como se houvesse um vento perigoso lá em cima. Mas Malorie não o sente ali embaixo, no rio. Não. Não há vento.
Mas algo está deixando os pássaros inquietos.
A dor no seu ombro é a pior que Malorie já sentiu. Ela se recrimina por não ter prestado mais atenção ao próprio corpo nos últimos quatro anos. Em vez disso, passou o tempo todo treinando as crianças. Até que as habilidades delas transcenderam os exercícios que Malorie inventava.
Mamãe, uma folha caiu no poço!
Mamãe, está chovendo no fim da rua e a chuva vem para cá!
Mamãe, um passarinho pousou no galho ao lado da nossa janela!
Será que as crianças vão ouvir a voz gravada antes dela? Precisam ouvir. E, quando isso acontecer, estará na hora de abrir os olhos. De olhar para o local onde o rio se divide em quatro canais. Ela precisa escolher o segundo canal à direita. Foi isso que mandaram que fizesse.
E logo ela terá que fazê-lo.
Os pássaros nas árvores piam. Há agitação nas margens. Homem, animal, monstro. Ela não tem ideia.
O medo que sente está firme no centro de sua alma.
E os pássaros nas árvores logo acima deles continuam piando.
Ela pensa na casa. Na última noite que passou com os outros moradores, todos juntos. O vento batia forte nas janelas. Havia uma tempestade chegando. Bem forte. Talvez os pássaros nas árvores saibam. Ou talvez saibam de alguma outra coisa.
— Não consigo ouvir — diz, de repente, a Menina. — Os pássaros, mamãe. Estão piando alto demais!
Malorie para de remar. Ela pensa em Victor.
— Como eles parecem estar? — pergunta às crianças.
— Com medo! — diz a Menina.
— Loucos! — afirma o Garoto.
Quanto mais atentamente Malorie escuta as árvores, mais terrível parece o som.
Quantos pássaros há aqui? Eles parecem ser infinitos.
Será que as crianças vão ouvir a gravação apesar de toda a cacofonia acima deles?
Victor enlouqueceu. Os animais enlouquecem.
Os pássaros não parecem sãos.
Devagar e às cegas, ela olha por cima do ombro para o que os segue.
Seus olhos estão fechados, pensa. Assim como seus olhos estavam fechados toda vez que você ia pegar água no poço. Toda vez que você tentava ir de carro buscar os amplificadores. Os seus olhos estavam fechados quando os de Victor não estavam. Com o que está preocupada? Já não ficou próxima delas? Já não ficou tão próxima de uma criatura que achou que podia sentir o cheiro dela?
Já, sim.
Você acrescenta os detalhes, pensa ela. É a sua noção de como é a aparência delas. Você acrescenta detalhes a um corpo e a uma forma, mas não faz nenhuma ideia de como são.
Cria um rosto que pode não existir.
As criaturas em sua mente andam em campos abertos, sem horizonte. Ficam ao lado das janelas de casas antigas e olham com curiosidade pelo vidro. Elas analisam. Examinam.
Observam. Fazem a única coisa que Malorie não pode fazer.
Olham.
Será que percebem que as flores nos jardins são bonitas? Entendem em que direção segue o rio? Será?
— Mamãe — diz o Garoto.
— O que foi?
— Esse barulho, mamãe. Parece alguém falando.
Ela pensa no homem do barco. Pensa em Gary. Mesmo agora, tão distante da casa, pensa em Gary.
Malorie tenta perguntar ao Garoto o que ele quer dizer, mas o barulho dos pássaros aumenta numa onda grotesca, quase sinfônica, de guinchos.
Parece que há pássaros demais e árvores de menos.
É como se ocupassem o céu inteiro.
Eles parecem loucos. Eles parecem loucos. Ai, meu Deus, eles parecem loucos.
Malorie vira a cabeça para olhar por cima do ombro de novo, apesar de não poder enxergar. O Garoto ouviu uma voz. Os pássaros parecem loucos. Quem está seguindo o barco deles?
No entanto, não parece mais que algo os segue. Parece que algo os alcançou.
— É uma voz! — berra o Garoto, como se emergisse de um sonho. Sua voz penetra aquele barulho impossível acima deles.
Malorie tem certeza disso. Os pássaros viram algo abaixo deles.
A canção comunal dos pássaros aumenta e chega ao auge antes de baixar de tom, contorcer-se e ultrapassar os limites. Malorie a ouve como se estivesse dentro dela. Como se estivesse presa em um aviário com milhares de pássaros malucos. Parece que uma gaiola se fechou com todos eles dentro. Uma caixa de papelão. Uma caixa de pássaros. Bloqueando o sol para sempre.
O que é isso? O que é isso? O que é isso?
O infinito.
De onde veio isso? De onde veio isso? De onde veio isso?
Do infinito.
As aves gritam. E o barulho que produzem não é uma canção.
A Menina berra.
— Alguma coisa bateu em mim, mamãe! Alguma coisa caiu!
Malorie também sente. Acha que está chovendo.
De forma inacreditável, o som dos pássaros fica ainda mais alto. Os guinchos são ensurdecedores. Malorie tem que tapar os ouvidos. Ela pede para as crianças fazerem o mesmo.
Algo cai com força em seu ombro machucado e ela grita, contorcendo-se de dor.
Desesperada, com uma das mãos na venda, vasculha o barco para descobrir o que a atingiu.
A Menina grita de novo:
— Mamãe!
Mas Malorie encontrou. Entre o seu indicador e o polegar não há uma gota de chuva, mas sim o corpo despedaçado de um passarinho. Ela toca na asa delicada do animal.
Malorie agora sabe.
No céu, para onde ela está proibida de olhar, os pássaros estão lutando. Estão matando uns aos outros.
— Cubram a cabeça! Segurem a venda!
Então, como uma onda, eles a acertam. Corpos penosos despencam feito granizo. O rio parece entrar em erupção com o peso de milhares de pássaros atingindo a água. Eles atingem o barco. Mergulham. Atingem Malorie. As aves batem em sua cabeça, em seu braço. Ela é atingida mais uma vez. E outra.
Quando o sangue dos pássaros escorre pelo seu rosto, ela consegue sentir o gosto deles.
E o cheiro também. Morte. Morrer. Apodrecimento. O céu está caindo, o céu está morrendo, o céu está morto.
Malorie chama as crianças, mas o Garoto já está falando, tentando lhe contar algo.
— Riverbridge — diz ele. — Rua Shillingham, 273... Meu nome é...
— O quê?
Agachada, Malorie se inclina para a frente. Ela pressiona com força os lábios do Garoto no seu ouvido.
— Riverbridge — repete ele. — Rua Shillingham, 273. Meu nome é Tom.
Malorie se ajeita, ferida, agarrando a venda.
Meu nome é Tom.
Pássaros atingem o corpo dela. Batem no barco.
Mas ela não está pensando neles.
Está pensando em Tom.
Olá! Estou ligando de Riverbridge. Rua Shillingham, 273. Meu nome é Tom. Imagino que vocês saibam o alívio que estou sentindo pela sua secretária eletrônica ter me atendido.
Isso significa que vocês ainda têm luz. Nós também...
Malorie começa a balançar a cabeça. não não não não não não não não não não não
— NÃO!
O Garoto ouviu primeiro. A voz de Tom. Gravada e tocada repetidas vezes. Acionada por movimento. Para ela. Para Malorie. Caso ela decidisse seguir pelo rio. Quando esse dia chegasse. Tom, o doce Tom, ecoando aqui durante todos esses anos. Tentando entrar em contato. Tentando encontrar alguém. Tentando construir uma ponte entre a vida na casa e uma melhor, em outro lugar.
Usaram a voz dele porque sabiam que você a reconheceria. É aqui, Malorie.
Este é o momento em que você deve abrir os olhos.
Quão verde é a grama? Quão coloridas são as folhas? Quão vermelho é o sangue dos pássaros que se espalha pelo rio?
— Mamãe! — grita o Garoto.
Mamãe tem que abrir os olhos, quer dizer ela. Mamãe tem que olhar.
Mas os pássaros enlouqueceram.
— Mamãe! — repete o Garoto.
Ela responde. E mal reconhece a própria voz.
— O que foi, Garoto?
— Tem alguma coisa aqui com a gente, mamãe. Tem alguma coisa bem aqui.
O barco para.
Algo o fez parar.
Ela consegue ouvir a coisa se mover na água, ao lado deles.
Não é um animal, pensa ela. Não é Gary. É a coisa da qual você tem se escondido por quatro anos e meio. É a coisa que não permite que você olhe.
Malorie se prepara.
Há algo na água à esquerda. A centímetros de seu braço.
Os pássaros acima dela estão cada vez mais distantes. Como se subissem, subissem numa corrida lunática até o fim do céu.
Ela consegue sentir a presença de alguma coisa ao seu lado.
Os pássaros estão ficando quietos. Acalmando-se. Somem. Sobem. Já se foram.
A voz de Tom continua. O rio flui em torno do barco.
Malorie grita quando sente a venda ser arrancada de seu rosto.
Ela não se mexe.
A venda é deixada a um centímetro de seus olhos fechados.
Será que ela pode ouvi-la? Uma respiração? É isso que está ouvindo? É isso?
Tom, pensa, Tom está deixando uma mensagem.
A voz dele ecoa pelo rio. Ele parece tão esperançoso. Vivo.
Tom. Vou ter que abrir os olhos. Fale comigo. Por favor. Me diga o que fazer. Tom, vou ter que abrir os olhos.
A voz dele vem de um ponto mais à frente. Ele soa como o sol, a única luz em toda aquela escuridão.
A venda é puxada um centímetro para mais longe de seu rosto. O nó pressiona a parte de trás da sua cabeça.
Tom, vou ter que abrir os olhos.
E então...


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