Caixa de Pássaros - Capítulo 42

...Ela abre.
Malorie senta-se na cama e segura a barriga antes de entender que está gritando há algum tempo. A cama está encharcada.
Dois homens correm para o quarto. Tudo é tão onírico (Estou mesmo tendo um bebê? Um bebê? Eu estava grávida esse tempo todo?) e tão assustador (Cadê Shannon? Cadê minha mãe?) que, de início, ela não reconhece Felix e Jules.
— Puta que pariu! — exclama Felix. — Olympia já está lá em cima. O trabalho de parto dela começou há umas duas horas.
Lá em cima onde?, pensa Malorie. Lá em cima onde?
Os homens são cuidadosos com ela e a ajudam a chegar à beirada da cama.
— Está pronta para fazer isso? — pergunta Jules, ansioso.
Malorie apenas olha para ele, franzindo a testa, o rosto vermelho e pálido ao mesmo tempo.
— Eu estava dormindo — diz ela. — Eu só estava... Lá em cima onde, Felix?
— Ela está pronta — afirma Jules, forçando um sorriso, tentando acalmar Malorie. — Você está maravilhosa, Malorie. Parece pronta.
Ela começa a perguntar:
— Lá...
Mas Felix responde antes que ela termine.
— Vamos fazer o parto no sótão. Tom diz que é o lugar mais seguro da casa. Caso alguma coisa aconteça. Mas não vai acontecer nada. Olympia já está lá em cima. Faz duas horas que entrou em trabalho de parto. Tom e Cheryl estão com ela. Não se preocupe, Malorie. Vamos fazer tudo que pudermos.
Malorie não responde. A sensação de ter algo dentro de seu corpo que precisa sair é a mais incrível e assustadora que já teve. Os dois homens a sustentam, cada um por um braço, e a levam para fora do quarto, passam pela porta e descem o corredor na direção dos fundos da casa. A escada do sótão já foi puxada, e, enquanto eles a estabilizam, Malorie vê os cobertores cobrindo a janela no fim do corredor. Ela se pergunta que horas são. Se já é a noite seguinte. Se já é a semana seguinte.
Eu realmente estou tendo meu bebê? Agora?
Felix e Jules a ajudam a subir os velhos degraus de madeira. Ela é capaz de escutar Olympia lá em cima. E a voz gentil de Tom dizendo coisas como respire, você vai ficar bem, você está ótima.
— Talvez não seja tão diferente assim — diz ela (os dois homens, graças a Deus, a ajudam a subir os degraus rangentes). — Talvez não seja tão diferente de como eu gostaria que fosse.
Há mais espaço ali em cima do que ela imaginava. Uma única vela ilumina o local.
Olympia está em cima de uma toalha estendida no chão. Cheryl está ao lado dela. Os joelhos de Olympia estão erguidos e um lençol fino a cobre da cintura para baixo. Jules ajuda Malorie a se deitar em outra toalha, diante de Olympia. Tom se aproxima de Malorie.
— Ai, Malorie! — exclama Olympia. Ela está sem fôlego e apenas parte dela fala enquanto o resto se contrai e se contorce. — Estou tão feliz por você estar aqui!
Malorie, confusa, não consegue evitar a sensação de que ainda está dormindo quando olha por cima dos joelhos cobertos e vê Olympia deitada, como um reflexo.
— Há quanto tempo está aqui, Olympia?
— Não sei. Desde sempre, eu acho!
Felix está falando baixinho com Olympia, perguntando do que ela precisa. Então desce para buscar. Tom lembra a Cheryl para manter as coisas limpas. Elas vão ficar bem, diz ele, desde que esteja tudo limpo. Estão usando toalhas e lençóis limpos. Álcool em gel trazido da casa de Tom. Dois baldes de água do poço.
Tom parece calmo, mas Malorie sabe que ele não está.
— Malorie? — chama Tom.
— Oi.
— Do que você precisa?
— Acho que de um copo d’água. E de música também, Tom.
— Música?
— É. Alguma coisa calma e gostosa, sabe, alguma coisa que possa fazer... — Alguma coisa para encobrir o barulho do meu corpo no chão de madeira de um sótão... — Aquela da flauta. Aquela fita.
— Está bem — responde Tom. — Vou pegar.
Ele sai, passando por ela e indo até a escada que desce exatamente atrás das costas de Malorie. Ela volta a atenção para Olympia. Ainda luta contra o sono. Vê uma pequena faca de carne a seu lado, pousada em uma toalha de papel, a menos de um metro dela. Cheryl acabou de mergulhá-la na água.
— Nossa senhora! — grita Olympia, de repente.
Felix se ajoelha e segura a mão dela.
Malorie observa.
Essas pessoas, pensa, o tipo de gente que responderia a um anúncio como aquele no jornal. Essas pessoas são sobreviventes.
Ela sente uma onda momentânea de paz. Sabe que não vai durar muito. Os moradores da casa flutuam por sua mente, os rostos de cada um. E, ao vê-los, ela sente algo parecido com amor.
Nossa, pensa, temos sido tão corajosos.
— Meu Deus! — berra Olympia de repente.
Cheryl corre para o lado dela.
Uma vez, quando Tom subiu ao sótão para procurar uma fita adesiva, Malorie observou do pé da escada. Mas ela nunca tinha ido até ali. Agora, respirando com dificuldade, olha para as cortinas que cobrem a única janela do local e sente um arrepio. Até mesmo o sótão foi protegido. Um cômodo que quase nunca é usado precisa de um cobertor. Os olhos de Malorie passam pela moldura de madeira da janela, depois pelas paredes cobertas de tábuas de madeira, pelo teto pontiagudo, pelas caixas de coisas que George deixou para trás. Seus olhos seguem até uma pilha alta de cobertores. Outra caixa com pedaços de plástico. Livros velhos.
Roupas velhas.
Há alguém de pé ao lado das roupas.
É Don.
Malorie sente uma contração.
Tom volta com um copo de água e o pequeno toca-fitas.
— Pronto, Malorie — diz. — Achei.
O som do crepitar de violinos escapa dos pequenos alto-falantes. Malorie considera aquilo perfeito.
— Obrigada — responde.
O rosto de Tom parece muito cansado. Os olhos dele estão semiabertos e inchados. Como se ele tivesse dormido por apenas uma hora ou menos.
Malorie sente uma contração tão terrível que, de início, acha que não é real. Parece que uma armadilha para ursos está presa em volta de sua cintura.
Vozes surgem por trás dela. Do pé da escada do sótão. É Cheryl. Jules. Ela mal tem consciência de quem está ali em cima e quem não está.
— Ai, meu Deus! — berra Olympia.
Tom está com ela. Felix vai para o lado de Malorie de novo.
— Você vai conseguir — grita Malorie para a amiga.
Nesse momento, um trovão ressoa do lado de fora. A chuva cai com força no telhado. De certa forma, a chuva é exatamente o barulho que ela queria. O mundo exterior soa como ela se sente por dentro. Tempestuoso. Ameaçador. Abominável. Os outros moradores surgem das sombras, depois desaparecem. Tom parece preocupado. Olympia arqueja, ofegante. A escada range. Alguém acabou de subir. É Jules de novo. Tom diz a ele que Olympia está bem mais adiantada do que Malorie. Trovões soam do lado de fora. Quando há um relâmpago, ela vê Don com clareza, os traços sombrios do seu rosto, os olhos fundos acima das olheiras.
Há uma pressão insuportável na barriga de Malorie. Parece que seu corpo está agindo sozinho, recusando os pedidos de sua mente por paz. Malorie grita e Cheryl sai do lado de Olympia e vai até ela. Malorie nem sabia que Cheryl estava ali.
— Isso é horrível — sibila Olympia.
Malorie pensa nas mulheres com os mesmos ciclos, mulheres com corpos em sintonia.
Apesar de terem conversado muito sobre quem teria o bebê primeiro, nem ela nem Olympia sequer chegaram a brincar que as duas poderiam dar à luz ao mesmo tempo.
Ah, como Malorie desejou um parto tradicional!
Mais trovões.
Agora está mais escuro no sótão. Tom traz uma segunda vela, a acende e a coloca no chão, à esquerda de Malorie. Através da chama bruxuleante, ela vê Felix e Cheryl, mas Olympia é difícil de distinguir. O torso e o rosto dela estão escondidos pelas sombras tremeluzentes.
Alguém desce a escada atrás dela. Será que foi Don? Ela não quer esticar o pescoço. Tom passa pela luz da vela e em seguida fica no escuro. Então Felix faz o mesmo, pensa Malorie, e depois Cheryl. Silhuetas se afastam dela e vão até Olympia feito fantasmas.
A chuva cai com ainda mais força no telhado.
Há uma comoção barulhenta e repentina no andar de baixo. Malorie não tem certeza, mas acha que alguém está berrando. Será que sua mente cansada está confundindo os sons? Quem está discutindo?
Parece mesmo que há uma briga no andar de baixo.
Ela não pode pensar nisso agora. Não vai.
— Malorie?
Ela grita quando o rosto de Cheryl aparece de repente ao seu lado.
— Aperte minha mão. Quebre, se precisar.
Malorie quer dizer: Traga mais luz para cá. Arranje um médico. Faça este parto por mim.
Em vez disso, responde com um grunhido.
Está tendo o bebê. Não adianta mais se perguntar quando.
Será que passarei a ver as coisas de forma diferente? Vi tudo pelo prisma desse bebê.
Era assim que eu enxergava a casa. Os moradores. O mundo. Foi assim que vi as notícias quando tudo começou e que vi as notícias quando elas cessaram. Já fiquei desesperada, paranoica, irritada e muito mais. Quando meu corpo voltar à forma que tinha na época em que eu andava livre pelas ruas, será que enxergarei as coisas de forma diferente de novo?
Como Tom lhe parecerá? Como soarão as ideias dele?
— Malorie! — grita Olympia na escuridão. — Acho que não vou conseguir fazer isso!
Cheryl diz a Olympia que ela vai conseguir, que está quase lá.
— O que está havendo lá embaixo? — pergunta Malorie de repente.
Don está no primeiro andar. Ela consegue ouvi-lo discutindo. Jules também. Isso, Don e Jules estão discutindo no corredor abaixo do sótão. Tom está com eles? E Felix? Não. Felix emerge da escuridão e segura sua mão.
— Você está bem, Malorie?
— Não — responde ela. — O que está havendo lá embaixo?
Ele hesita, então diz:
— Não sei direito. Mas você tem coisas mais importantes com que se preocupar do que uma briga.
— É Don? — pergunta ela.
— Não se preocupe com isso, Malorie.
A chuva fica mais forte. É como se cada gota tivesse um peso próprio, audível.
Malorie ergue a cabeça para ver os olhos de Olympia nas sombras, encarando-a.
Nesse instante, Malorie pensa ter escutado outro barulho.
Para além da chuva, da discussão, da comoção no andar de baixo, Malorie ouve alguma coisa. Mais doce que violinos.
O que é?
— Ai, porra! — berra Olympia. — Façam isso parar!
Malorie tem cada vez mais dificuldade de respirar. Parece que o bebê está acabando com o fôlego dela. Como se estivesse tentando sair pela garganta.
Tom está ali. Ao lado dela.
— Sinto muito, Malorie.
Ela se vira para ele. O rosto que vê, a expressão do amigo é algo que ela lembrará por anos.
— Pelo quê, Tom? Sente muito por que ter sido assim que aconteceu?
Os olhos de Tom parecem tristes. Ele assente com a cabeça. Ambos sabem que ele não tem razão alguma para pedir desculpas, mas também sabem que nenhuma mulher deveria precisar suportar um parto no sótão abafado de uma casa que só é seu lar porque ninguém pode sair.
— Sabe o que eu acho? — diz ele, com delicadeza, estendendo a mão para pegar a dela. — Acho que você vai ser uma mãe maravilhosa. Acho que vai criar essa criança tão bem que nem vai fazer diferença se o mundo continuar desse jeito ou não.
Para Malorie, parece que agora há um gancho enferrujado tentando arrancar o bebê de seu corpo. Que há uma corrente sendo puxada por um guincho escondido nas sombras diante dela.
— Tom — diz, com esforço. — O que está havendo lá embaixo?
— Don está chateado. É só isso.
Ela quer conversar mais sobre esse assunto. Não sente mais raiva de Don. Está preocupada com ele. De todos os moradores da casa, ele foi o mais afetado pelo novo mundo. Está perdido nele. Em seus olhos, há algo mais vazio do que desespero. Malorie quer dizer a Tom que ama Don, que todos o amam, que ele só precisa de ajuda. Mas a dor é tudo que ela consegue processar. E palavras são impossíveis naquele momento. A discussão no andar de baixo está parecendo uma piada. Como se alguém estivesse lhe pregando uma peça. Como se a casa estivesse lhe dizendo: Viu só? Tenha um pouco de senso de humor apesar desse sofrimento horrível dentro do meu sótão.
Malorie sabia o que era exaustão e fome. Dor física e cansaço mental extremo. Mas nunca vivenciara o estado em que está agora. Ela não só tem o direito de não ser incomodada por uma briguinha boba entre os moradores da casa, mas quase merece que todos saiam da casa e fiquem lá fora no quintal, de olhos fechados, pelo tempo necessário para ela e Olympia fazerem o que os seus corpos precisam.
Tom se levanta.
— Já volto — diz. — Quer mais água?
Malorie balança a cabeça e volta os olhos para as sombras e o lençol que representam o esforço de Olympia à frente dela.
— Vamos conseguir! — afirma Olympia, de repente, frenética. — Está acontecendo!
Tantos barulhos. As vozes no andar de baixo, as vozes no sótão (vindo das sombras e de rostos que emergem dessas sombras), o rangido da escada toda vez que alguém sobe e desce para analisar a situação ali em cima e depois (ela sabe que há um problema no andar de baixo, mas simplesmente não pode se importar com isso no momento) a que está acontecendo lá embaixo. A chuva cai, mas há outra coisa. Outro barulho. Talvez de um instrumento. As notas mais altas do piano da sala de jantar.
De repente, Malorie sente outra estranha onda de paz. Apesar dos milhares de lâminas que penetram seu pescoço, seus pulmões e seu peito, ela entende que, não importa o que faça, não importa o que aconteça, o bebê vai nascer. Não importa para que tipo de mundo ela está trazendo esse bebê. Olympia está certa. Está acontecendo. A criança está vindo, a criança está quase saindo. E ela sempre fez parte do novo mundo.
A criança conhece a ansiedade, o medo, a paranoia. Ficou preocupada quando Tom e Jules foram tentar encontrar cachorros. Sentiu um alívio enorme quando eles voltaram.
Ficou assustada com a mudança em Don. Com a mudança na casa. Com a transformação de um refúgio esperançoso em um lugar amargo e ansioso. Ficou triste quando li o anúncio que me levou até ali, assim como quando li o caderno no porão.
Ao pensar na palavra “porão”, Malorie consegue de fato escutar a voz de Don no primeiro andar.
Ele está gritando.
No entanto, algo além da voz dele a deixa ainda mais preocupada.
— Está ouvindo esse barulho, Olympia?
— O quê? — resmunga a amiga.
Parece que a garganta dela está grampeada.
— Esse barulho. Parece que...
— É a chuva — afirma Olympia.
— Não, não é isso. Tem outra coisa. Parece que já tivemos nossos bebês.
— O quê?
Para Malorie aquilo soa mesmo como um bebê. Algo parecido com isso, distante dos moradores da casa que estão ao pé da escada. Talvez no primeiro andar, na sala de estar, talvez até...
Talvez até do lado de fora.
Mas o que aquilo significa? O que está acontecendo? Há alguém chorando na varanda?
Impossível. É alguma outra coisa.
Mas está viva.
Um relâmpago. O sótão inteiro fica visível, como num pesadelo, durante um lampejo. O cobertor que tapa a janela se mantém fixo na mente de Malorie muito depois de a luz se apagar e do trovão soar. Olympia grita quando isso acontece, e Malorie, de olhos fechados, vê a expressão de medo da amiga congelada em sua mente.
Mas a atenção de Malorie se volta para a pressão insuportável em sua barriga. Parece que Olympia está gritando por ela. Toda vez que Malorie sente aquela faca horrenda penetrando na lateral de seu corpo, Olympia grita.
Será que estou gritando por ela também?
A fita cassete para. Assim como a comoção no andar de baixo.
Até a chuva diminui.
Agora é possível ouvir os sons mais sutis no sótão. Malorie escuta a própria respiração.
Os passos dos moradores que as ajudam estão bem definidos.
Figuras surgem. Depois somem.
Lá está Tom (ela tem certeza).
Lá está Felix (ela acha).
Lá está Jules, agora ao lado de Olympia.
Será que o mundo está recuando? Ou estou viajando para cada vez mais longe na direção da dor?
Ela ouve de novo o barulho. Como se houvesse uma criança na porta. Algo jovem e vivo vindo do andar de baixo. Só que agora está mais evidente. Só que agora não tem que se sobressair à discussão, à música e à chuva.
Sim, está mais evidente, mais bem definido. Enquanto Tom atravessa o sótão, ela ouve o som entre os passos dele. As botas do amigo se conectam à madeira, depois se erguem, expondo as notas juvenis que vêm de baixo dela.
Então, com muita clareza, Malorie reconhece o que é aquele som.
São os pássaros. Ai, meu Deus. São os pássaros.
A caixa de papelão batendo na parede de fora da casa e o arrulhar suave e doce dos pássaros.
— Tem alguma coisa lá fora — diz ela.
No começo, é baixinho.
Cheryl está a alguns metros dela.
— Tem alguma coisa lá fora! — grita Malorie.
Jules olha por cima do ombro de Olympia.
Um estrondo vem do andar inferior. Felix grita. Jules passa correndo por Malorie. Suas botas dão passos ruidosos e rápidos na escada atrás dela.
Malorie procura por Tom no sótão, desesperada. Ele não está ali. Está no andar de baixo.
— Olympia — diz Malorie, mais para si mesma. — Estamos sozinhas aqui em cima!
A amiga não responde.
Malorie tenta não ouvir, mas não consegue evitar. Parece que todos estão na sala de estar.
No primeiro andar, com certeza. Todos gritam. Será que Jules acabou de dizer “não faça”?
À medida que a comoção aumenta, a dor de Malorie também cresce.
De costas para a escada, ela estica o pescoço. Quer saber o que está acontecendo. Quer pedir que parem. Há duas grávidas no sótão que precisam da ajuda de vocês. Parem, por favor.
Delirante, Malorie deixa o queixo cair no peito. Seus olhos se fecham. Ela sente que está prestes a perder a consciência, que pode desmaiar. Ou pior.
Volta a chover. Malorie abre os olhos. Ela vê Olympia, a cabeça voltada para o teto. As veias em seu pescoço estão aparentes. Devagar, Malorie examina o sótão. Ao lado da amiga há caixas. Depois, a janela. E mais caixas. Livros velhos. Roupas velhas.
O clarão de um relâmpago ilumina o sótão. Malorie fecha os olhos. Na sua própria escuridão, vê uma imagem congelada das paredes do cômodo.
A janela. As caixas.
E um homem, parado onde Don estava quando ela subiu.
Não é possível, pensa.
Mas é.
E, antes mesmo que seus olhos se abram totalmente, ela percebe quem está parado ali, quem está no sótão com ela.
— Gary — diz Malorie, invadida por centenas de pensamentos. — Você ficou escondido no porão.
Ela pensa em Victor rosnando para a porta do porão.
Pensa em Don, dormindo lá embaixo.
Enquanto Malorie encara Gary nos olhos, a discussão no andar de baixo se intensifica.
Jules está rouco. Don, furioso. Parece que estão se socando.
Gary emerge das sombras. Está se aproximando dela.
Quando fechamos os olhos e Tom abriu a porta da frente, pensa Malorie, sabendo que essa é a verdade, Don o escondeu no porão da casa.
— O que você está fazendo aqui?! — berra Olympia de repente.
Gary não olha para ela. Apenas se aproxima de Malorie.
— Fique longe de mim! — grita ela.
Ele se ajoelha ao seu lado.
— Você — diz. — Tão vulnerável nesse estado. Achei que teria mais compaixão e não expulsaria alguém de volta para um mundo como este.
Os relâmpagos lampejam de novo.
— Tom! Jules!
O bebê de Malorie ainda não nasceu. Mas deve estar quase.
— Não grite — pede Gary. — Não estou com raiva.
— Por favor, me deixe em paz. Por favor, nos deixe sozinhas.
Gary ri.
— Você diz isso o tempo todo! Só quer que eu vá embora!
Trovões soam do lado de fora. Os moradores da casa gritam mais alto.
— Você nunca saiu daqui — afirma Malorie, como se cada palavra retirasse um peso do seu peito.
— Isso mesmo. Nunca saí daqui.
Lágrimas se formam nos olhos de Malorie.
— Don teve a sensibilidade de me ajudar e a sensatez de prever que eu poderia ser expulso na votação.
Don, pensa ela, o que foi que você fez?
Gary se aproxima ainda mais.
— Você se incomoda se eu lhe contar uma história enquanto faz o que tem que fazer?
— Como assim?
— Uma história. Alguma coisa para desviar sua atenção da dor. E posso afirmar que está fazendo um ótimo trabalho. Bem melhor do que minha mulher.
A respiração de Olympia parece complicada, penosa demais, como se não fosse possível que ela sobrevivesse àquela situação.
— Uma coisa ou outra está acontecendo aqui — explica Gary. — Ou...
— Por favor — pede Malorie. — Por favor, me deixe em paz.
— Ou minhas teorias estão certas ou, e eu odeio usar essa palavra, sou imune.
Parece que o bebê está no limite do corpo de Malorie. No entanto, ele parece ser grande demais para sair. Ela arqueja e fecha os olhos. Mas a dor está por toda parte, até na escuridão.
Não sabem que ele está aqui em cima. Meu Deus, não sabem que ele está aqui.
— Fiquei muito tempo observando esta rua — diz Gary. — Vi Tom e Jules tropeçarem pelo quarteirão. Eu estava a centímetros de Tom enquanto ele analisava a tenda que me abrigava.
— Pare. PARE!
No entanto, gritar só piora a dor. Malorie se concentra. Faz força. Respira. Mas não consegue deixar de ouvir.
— Achava fascinante como o homem se esforçava, enquanto eu observava, sem sofrer nada, e as criaturas passavam todos os dias e noites, às vezes várias de uma só vez. Foi por isso que me instalei nesta rua, Malorie. Você não tem ideia de quanta coisa acontece lá fora.
Por favor por favor por favor por favor por favor por favor por favor por favor POR FAVOR
Do andar de baixo, ela ouve a voz de Tom:
— Jules! Preciso de você!
Então um estrondo de passos desce a escada.
— TOM! SOCORRO! GARY ESTÁ AQUI EM CIMA! TOM!
— Ele está preocupado — afirma Gary. — Estão com um problema sério lá embaixo.
Ele se levanta. Vai até a porta do sótão e a fecha, em silêncio.
Então a tranca.
— Está melhor assim? — pergunta.
— O que você fez? — sibila Malorie.
Mais gritos no andar de baixo. Parece que todos estão se movendo ao mesmo tempo. Por um instante, Malorie acha que ficou louca. Não importa quão segura esteja, ela sente que não há como se esconder da insanidade do novo mundo.
Alguém berra no corredor abaixo da porta trancada do sótão. Malorie acha que é Felix.
— Minha mulher não estava preparada — diz Gary, surgindo ao lado dela, de repente. — Eu a observei enquanto ela via uma criatura. Não a avisei que estava vindo. Eu...
— Por que não contou nada para a gente?! — pergunta Malorie, gritando, fazendo força.
— Porque — começa Gary —, assim como os outros, nenhum de vocês acreditaria em mim. Só Don.
— Você é doido.
Gary dá uma risada forçada.
— O que está acontecendo lá embaixo?! — grita Olympia. — Malorie! O que está acontecendo lá embaixo?
— Eu não sei!
— É Don — explica Gary. — Ele está tentando convencer os outros das coisas que o ensinei.
— É DON!
A voz que vem do primeiro andar é tão clara quanto se estivesse ali no sótão com eles.
— DON TIROU TUDO! DON TIROU OS COBERTORES DAS JANELAS!
— Não vão machucar a gente — sussurra Gary.
Os pelos da sua barba úmida encostam na orelha de Malorie.
Mas ela não está mais prestando atenção nele.
— Malorie? — sussurra Olympia.
— DON TIROU OS COBERTORES E ABRIU A PORTA! ESTÃO NA CASA! VOCÊ ME OUVIU? ELAS ESTÃO NA CASA!
O bebê está vindo o bebê está vindo o bebê está vindo
— Malorie?
— Olympia — responde ela, derrotada, sem esperança (é verdade? A voz dela está mesmo dizendo isso?). — Sim. Estão na casa agora.
A tempestade lá fora chicoteia as paredes.
O caos no andar de baixo parece impossível.
— Eles parecem lobos — chora Olympia. — Parecem lobos!
Don Don Don Don Don Don Don Don Don Don arranque os cobertores deixe as criaturas entrarem alguém as viu deixe-as entrar alguém enlouqueceu quem foi?
Don as deixou entrar
Don arrancou os cobertores
Don não acha que elas podem nos machucar
Don acha que tudo é coisa da nossa cabeça
Gary ajoelhou-se ao lado dele na cadeira da sala de jantar
Gary falou com ele de trás da tapeçaria no porão
Don arrancou os cobertores
Gary lhe disse que eram uma fraude, Gary lhe disse que eram inofensivas pode ter ficado louco quem é quem foi?
(força, Malorie, força, você está tendo um bebê, um bebê com que se preocupar, feche os olhos se precisar mas faça força faça força) estão na casa agora e todos que estão lá dentro parecem lobos.
Os pássaros, pensa Malorie, histérica, foram uma boa ideia, Tom. Uma ótima ideia.
Olympia está lhe fazendo perguntas desesperadas, mas Malorie não consegue responder.
Está com a cabeça cheia.
— É verdade? Será que tem realmente uma aqui dentro de casa? Não pode ser verdade. A gente nunca permitiria isso! Tem mesmo uma aqui na casa? Agora?
Algo bate numa parede no andar de baixo. Talvez um corpo. Os cães latem.
Alguém jogou um cachorro na parede.
— DON ARRANCOU OS COBERTORES DAS JANELAS!
Quem está de olhos fechados lá embaixo? Quem teve essa presença de espírito? Será que Malorie conseguiria? Será que Malorie conseguiria ficar de olhos fechados enquanto os amigos enlouqueciam?
Meu Deus, pensa ela. Vão morrer lá embaixo.
O bebê está matando Malorie.
Gary continua sussurrando no ouvido dela.
— O que você está ouvindo lá embaixo é o que quero dizer, Malorie. Eles acham que têm que enlouquecer. Mas não têm. Passei muito tempo lá fora. Observei as criaturas durante semanas.
— Impossível — diz Malorie.
Ela não sabe se disse aquilo para Gary, para o barulho no andar de baixo ou para a dor que acredita que nunca vai passar.
— Na primeira vez que vi uma, achei que tivesse ficado maluco. — Gary ri de nervoso. — Mas não. E, ao perceber que continuava são, comecei a entender o que estava acontecendo. Com meus amigos. Com minha família. Com todo mundo.
— Não quero mais ouvir! — grita Malorie.
Ela sente que vai se partir ao meio. Aconteceu alguma coisa errada, pensa. O bebê que está tentando sair dela é grande demais e vai parti-la ao meio. É um menino, acredita ela.
— Quer saber?
— Pare!
— Quer saber?
— Não! Não! Não!
Olympia urra, o céu urra, os cães urram no andar de baixo. Malorie acredita ter escutado Jules, especificamente. Ela o ouve correr em um andar abaixo. Ela o ouve tentar destruir algo no banheiro lá de baixo.
— Talvez eu seja imune, Malorie. Ou simplesmente consciente.
Ela quer perguntar: Você tem ideia do quanto poderia ter nos ajudado? Entende como seria mais seguro para nós com você aqui?
Mas Gary é louco.
E provavelmente sempre foi.
Don arrancou os cobertores das janelas.
Gary ajoelhou-se ao lado dele na sala de jantar.
Gary falou com ele de trás de uma tapeçaria no porão.
Gary o diabinho no ombro macio de Don.
Há uma batida trovejante na porta do sótão.
— ME DEIXEM ENTRAR! — grita alguém.
É Felix, pensa Malorie. Ou Don.
— PELO AMOR DE DEUS ME DEIXEM ENTRAR!
Mas não é nenhum dos dois.
É Tom.
— Abra a porta para ele! — grita Malorie para Gary.
— Tem certeza de que quer que eu faça isso? Não me parece muito seguro.
— Por favor por favor por favor! Deixe-o entrar!
É Tom, ai, meu Deus, é Tom, é Tom, ai, meu Deus, é Tom.
Ela faz muita força. Ai, meu Deus, ela faz muita força.
— Respire — pede Gary. — Respire. Está quase lá.
— Por favor — pede Malorie. — Por favor!
— ME DEIXEM ENTRAR! ME DEIXEM SUBIR AÍ!
Olympia também está gritando:
— Abra a porta para ele! É Tom!
A insanidade no andar de baixo está batendo à porta.
Tom.
Tom está louco. Tom viu uma das criaturas.
Tom está louco.
Você o ouviu? Ouviu a voz dele? É o barulho que ele faz. É assim que ele fica sem sanidade, sem sua linda sanidade.
Gary se levanta e atravessa o sótão. A chuva bate no telhado.
Então as batidas na porta param.
Malorie olha para Olympia, do outro lado do cômodo.
O cabelo preto da amiga se mistura às sombras. Seus olhos brilham como chamas.
— Estamos... quase... lá — diz ela.
O bebê de Olympia está nascendo. À luz da vela, Malorie pode ver que a amiga já está na metade do processo.
Por instinto, ela tenta pegá-lo, apesar de estar na outra ponta do sótão.
— Olympia! Não se esqueça de tapar os olhos do seu filho. Não se esqueça de...
A porta do sótão se abre com um estrondo. Alguém quebrou a tranca.
Malorie grita, mas tudo o que ouve é a batida do próprio coração, mais alta do que qualquer coisa naquele novo mundo.
Então ela fica em silêncio.
Gary se levanta e vai até a janela.
Passos pesados passam por trás dela.
O bebê de Malorie está nascendo.
A escada range.
— Quem está aí? — grita ela. — Quem é? Todo mundo está bem? É você, Tom? Quem está aí?
Alguém que ela não pode ver subiu a escada e está no sótão com eles.
Malorie, de costas para a escada, vê a expressão de Olympia mudar de dor para veneração.
Olympia, pensa ela. Não olhe. Fizemos tudo direitinho. Fomos tão corajosas. Não olhe.
Em vez disso, pegue seu filho. Tape seus olhos quando sair totalmente. Tape os olhos dele. E os seus. Não olhe. Olympia. Não olhe.
Mas ela percebe que é tarde demais para a amiga.
Olympia se inclina para a frente. Os olhos dela se arregalam, a boca se escancara. O rosto se transforma em três círculos perfeitos. Por um instante, Malorie vê os traços da amiga se contorcerem, depois brilharem.
— Você é linda — diz Olympia, sorrindo. É um sorriso torto, perturbado. — Não tem nada de errado com você. Quer ver meu bebê? Quer ver meu bebê?
A criança, a criança, pensa Malorie, a criança está dentro dela e ela enlouqueceu. Ai, meu Deus, Olympia enlouqueceu, ai, meu Deus, a coisa está atrás de mim, a coisa está atrás do meu filho.
Malorie fecha os olhos.
Ao fazer isso, a imagem de Gary persiste, ainda parada no limite do alcance da luz. Mas ele não parece tão confiante quanto afirmou que estaria. Parece uma criança assustada.
— Olympia — diz Malorie. — Você precisa tapar os olhos do bebê. Precisa esticar a mão para baixo. Até o seu bebê.
Malorie não consegue ver a expressão da amiga. Mas a voz revela a transformação que ela sofreu.
— Como é que é? Vai me dizer agora como criar meu filho? Que tipo de vagabunda você é? Que tipo de...?
As palavras de Olympia se transformam num grunhido gutural.
Essa história de insanidade.
As palavras doentes e perigosas de Gary.
Olympia está uivando.
O bebê de Malorie está coroando. Ela faz força para empurrá-lo.
Com uma força que não sabia que tinha, Malorie se arrisca para a frente na toalha. Quer o filho de Olympia. Vai protegê-lo.
Então, em meio a toda aquela dor e loucura, Malorie ouve o primeiro choro do bebê de Olympia.
Feche os olhos dele.
Por fim, o filho de Malorie também nasce e a mão dela está pronta para tapar os olhos dele.
Sua cabeça é tão macia... Ela acha que o alcançou a tempo.
— Venha aqui — diz, levando o bebê ao peito. — Venha aqui e feche os olhos.
Gary ri, ansioso, do outro lado do sótão.
— Incrível! — exclama ele.
Malorie tateia em busca da faca. Encontra-a e corta o próprio cordão umbilical. Depois corta duas faixas da toalha ensanguentada debaixo dela. Sente o órgão genital do bebê e percebe que é um menino, mas não tem ninguém para quem contar essa descoberta. Nenhuma irmã. Nenhuma mãe. Nenhum pai. Nenhuma enfermeira. Nenhum Tom. Ela o aperta no peito com força.
Devagar, amarra um pedaço de toalha em torno dos olhos do filho.
Quão importante é a criança ver o rosto da mãe quando chega ao mundo?
Ela ouve a criatura se mover atrás de si.
— Bebê — diz Olympia, mas sua voz está rouca. Parece que está usando a voz de uma mulher mais velha. — Meu bebê — gralha ela.
Malorie desliza para a frente. Os músculos de seu corpo resistem. Ela tenta alcançar o filho de Olympia.
— Pronto — diz, às cegas. — Pronto, Olympia. Me entregue o bebê. Me deixe vê-lo.
Olympia grunhe.
— Por que eu deveria deixar você ver? Para que quer pegar o meu filho? Ficou maluca?
— Não. Só quero vê-lo.
Os olhos de Malorie continuam fechados. O sótão está em silêncio. A chuva cai com suavidade no telhado. Malorie desliza para a frente, ainda sobre o sangue expulso por seu corpo.
— Posso? Posso apenas vê-la? É uma menina, não é? Você acertou o sexo?
Malorie ouve algo tão chocante que fica paralisada no meio do chão do sótão.
Olympia está mastigando alguma coisa. Ela sabe que é o cordão umbilical.
O estômago de Malorie fica embrulhado. Ela mantém os olhos bem fechados. Vai vomitar.
— Posso vê-la? — pergunta.
— Tome. Tome! — diz Olympia. — Olhe para ela. Olhe para ela!
Enfim, as mãos de Malorie pegam o bebê da amiga. É uma menina.
Olympia se levanta. Parece pisar em uma poça de chuva. Mas Malorie sabe que é sangue.
Placenta, suor e sangue.
— Obrigada — sussurra Malorie. — Obrigada, Olympia.
Essa ação, a entrega da criança, marcará Malorie para sempre. O momento em que Olympia fez a coisa certa para a filha, apesar de já ter perdido a sanidade.
Malorie amarra o segundo pedaço de toalha em torno dos olhos da neném.
Olympia anda na direção da janela coberta. Para onde Gary está.
A coisa está esperando, parada, atrás de Malorie.
Ela segura os dois bebês, protegendo ainda mais os olhos deles com os dedos sangrentos e molhados. Ambos choram.
E, de repente, Olympia parece mexer em alguma coisa, deslizar algo.
Como se estivesse tentando escalar.
— Olympia?
Parece que ela está montando alguma coisa.
— Olympia? O que você está fazendo, Olympia? Gary, faça ela parar. Por favor, Gary.
As palavras de Malorie são inúteis. Gary é o mais louco de todos.
— Vou lá para fora, senhor — diz Olympia para Gary, que deve estar perto dela. — Já faz muito tempo que estou aqui dentro.
— Olympia, pare.
— Vou LÁ PARA FORA — diz ela.
Sua voz parece ao mesmo tempo a de uma criança e a de uma centenária no leito de morte.
— Olympia!
É tarde demais. Malorie ouve o vidro da janela do sótão se espatifar. Algo atinge a casa.
Silêncio. No andar de baixo. No sótão. Então Gary diz:
— Ela se enforcou! Ela se enforcou com o próprio cordão umbilical!
Não. Por favor, Deus, não deixe que esse homem descreva a cena para mim.
— Está pendurada pelo próprio cordão! É a coisa mais incrível que já vi! Ela se enforcou com o próprio cordão umbilical!
Há alegria, felicidade na voz dele.
A coisa se move atrás dela. Malorie está no epicentro de toda aquela loucura. A loucura antiga. Do tipo que as pessoas costumavam manifestar na guerra, em divórcios, com a pobreza e depois de saber que a amiga está...
— Pendurada pelo próprio cordão umbilical! Pelo próprio cordão!
— Cale a boca! — grita Malorie, sem enxergar. — Cale a boca!
Mas suas palavras ficam sufocadas quando sente que a coisa atrás dela está se aproximando. Parte da criatura (o rosto?) passa perto dos lábios dela.
Malorie apenas respira. Não se mexe. O sótão está em silêncio.
Ela consegue sentir o calor, a quentura, da coisa ao seu lado.
Shannon, pensa, olhe para as nuvens. Elas se parecem com a gente. Comigo e com você.
Malorie aumenta a pressão sobre os olhos dos bebês.
E ouve a coisa atrás de si se retrair. Parece que está se afastando de Malorie. Indo para mais longe.
A criatura se detém. Para.
Ao escutar a escada de madeira ranger e ter certeza de que é o som de alguém descendo, Malorie solta o soluço mais profundo que qualquer som que já emitiu.
Os passos ficam distantes. Silenciosos. Então desaparecem.
— A coisa foi embora — conta Malorie aos bebês.
Agora ela ouve Gary se mover.
— Não chegue perto da gente! — grita Malorie, de olhos fechados. — Não toque na gente!
Ele não toca nela. Apenas passa e a escada range de novo.
Ele desceu. Foi ver quem sobreviveu. E quem morreu.
Ela respira ofegante, sente a dor da exaustão. Da perda de sangue. Seu corpo lhe diz que ela precisa dormir, dormir. Estão sozinhos no sótão, Malorie e os bebês. Ela começa a se deitar. Precisa fazê-lo. Em vez disso, espera. Escuta. Descansa.
Quanto tempo está passando? Por quanto tempo fiquei com os bebês no colo?
Mas um novo som interrompe seu descanso. Está vindo do andar de baixo. Um som muito comum no velho mundo.
Olympia está pendurada (foi isso que ele disse foi isso que ele disse) na janela do sótão.
Com o vento, o corpo dela bate na casa.
E agora algo toca no primeiro andar.
É o telefone. O telefone está tocando.
Malorie quase fica hipnotizada pelo som. Há quanto tempo ela não ouve algo parecido?
Alguém está ligando para eles.
Alguém está ligando de volta.
Malorie se vira, deslizando sobre os resíduos do parto. Põe a menina no colo, então a cobre gentilmente com a própria blusa. Usando a mão livre, tateia até encontrar a escada. É íngreme. É antiga. Nenhuma mulher que acabou de dar à luz deveria ter que enfrentá-la.
Mas o telefone está tocando. Alguém está retornando uma ligação. E Malorie vai atender.
Triiiiiiiiiiim
Apesar das vendas feitas com a toalha, ela pede que os bebês mantenham os olhos fechados.
Essa ordem será a mais frequente que ela dará aos filhos nos próximos quatro anos. E nada vai impedi-la de dizer isso, mesmo que sejam jovens demais para entender.
Triiiiiiiiiiim
Sentada, ela escorrega até a beira da escada. Ergue as pernas para colocar os pés no primeiro degrau. Seu corpo grita, pedindo que pare.
Mas ela continua a descer.
Agora está no andar de baixo. Segura o menino com o braço direito, a palma da mão sobre o rosto dele. A garota está dentro de sua blusa. Os olhos de Malorie estão fechados, o mundo está preto e ela precisa tanto dormir que poderia simplesmente cair da escada e mergulhar no sono. Mas ela anda, dá passos, usando o telefone como guia.
Triiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim
Seus pés encostam no carpete azul-claro do corredor branco no segundo andar. De olhos fechados, ela não vê essas cores, assim como não vê Jules deitado de bruços junto à parede do lado direito, com cinco faixas sangrentas que vão da altura da cabeça de Malorie até onde as mãos do amigo tocam o chão.
No topo da escada, ela hesita. Respira fundo. Acredita que é capaz de fazer isso. Então continua.
Passa por Cheryl, mas não percebe. Ainda não. A cabeça de Cheryl está voltada para o primeiro andar, mas os pés ainda estão no segundo. Seu corpo está contorcido de uma maneira horrível e não natural.
Sem saber, Malorie passa a centímetros dela.
Quase toca em Felix ao pé da escada. Mas acaba não encostando nele. Mais tarde, perderá o fôlego ao sentir os buracos no rosto do amigo.
Triiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim
Ela não faz ideia de que passa ao lado de um dos huskies. Ele está jogado numa parede, manchada de roxo-escuro.
Malorie quer perguntar: Tem alguém aqui ainda? Quer gritar essa pergunta. Mas o telefone continua tocando e ela acha que não vai parar até alguém atender.
Malorie segue o som, apoiando-se na parede.
A chuva e o vento entram pelas janelas quebradas.
Tenho que atender ao telefone.
Se estivesse de olhos abertos, ela não suportaria ver a quantidade de sangue na casa.
Triiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim
Ela verá tudo aquilo depois. Mas agora o telefone soa muito alto, muito próximo.
Malorie se vira, apoia as costas na parede e então escorrega, sentindo uma dor excruciante, até o carpete. O telefone está na mesinha de canto. Cada parte de seu corpo dói e arde.
Colocando o garoto com a menina em seu colo, ela estende a mão e tateia, procurando o telefone que toca sem parar.
— Alô.
— Alô.
É um homem. A voz dele está tão calma... Tão horrivelmente deslocada.
— Quem está falando? — pergunta Malorie.
Ela mal consegue acreditar que está usando um telefone.
— Meu nome é Rick. Recebemos a mensagem de vocês alguns dias atrás. Acho que podemos dizer que estávamos ocupados. Qual é o seu nome?
— Quem está falando?
— Vou repetir: meu nome é Rick. Um homem chamado Tom deixou uma mensagem para a gente.
— Tom.
— É. Ele mora aí, não é?
— Meu nome é Malorie.
— Você está bem, Malorie? Parece triste.
Ela respira fundo. Acha que nunca mais ficará bem.
— Estou — responde. — Estou bem.
— Não temos muito tempo. Você tem vontade de sair de onde está? Se instalar em um lugar mais seguro? Suponho que a resposta seja sim.
— Sim — diz Malorie.
— Então faça o seguinte. Anote se puder. Tem uma caneta?
Malorie diz que sim e pega a caneta ao lado da lista telefônica de Tom.
Os bebês choram.
— Parece que tem um bebê com você.
— Tem.
— Imagino que seja por isso que você queira encontrar um lugar melhor. A indicação é a seguinte, Malorie. Pegue o rio.
— O quê?
— Pegue o rio. Sabe onde é?
— S-sei. Sei onde é. Ele passa bem atrás da casa. A oitenta metros do poço, pelo que me falaram.
— Ótimo. Pegue o rio. É a coisa mais perigosa que você pode fazer, mas imagino que, se você e Tom sobreviveram até hoje, vão conseguir. Encontrei o endereço de vocês no mapa e parece que vão ter que viajar por pelo menos uns trinta quilômetros. Bem, o rio vai se dividir...
— Vai o quê?
— Desculpe. Devo estar falando rápido demais. Mas estou lhe dando indicações de um lugar melhor.
— Como assim?
— Bem, não temos janelas. Temos água corrente. E cultivamos nossa própria comida. É o lugar mais completo que deve existir hoje em dia. Há muitos quartos. Bons quartos. A maioria de nós acha que está melhor agora do que antes.
— E quantas pessoas estão aí?
— Cento e oito.
Poderia ser qualquer número para Malorie. Ou poderia ser um número infinito.
— Mas primeiro me deixe explicar como chegar até aqui. Seria uma tragédia se a ligação caísse antes de você saber para onde ir.
— Está bem.
— O rio vai se dividir em quatro canais. O que você precisa pegar é o segundo à direita. Então não adianta se agarrar à margem direita e torcer para conseguir chegar. É complicado. E você vai ter que abrir os olhos.
Malorie balança a cabeça devagar. Não.
Rick continua:
— E é assim que vai saber que chegou a hora — explica o homem. — Vai ouvir uma gravação. Uma voz. Não podemos ficar o dia inteiro, todos os dias, na beira do rio. É perigoso demais. Em vez disso, instalamos um alto-falante lá. É ativado por movimento. Conhecemos bem a floresta e o rio próximos à nossa instituição por meio de aparelhos como esse. Quando o alto-falante é ligado, a gravação toca sem parar por trinta minutos. Você vai ouvir. É sempre o mesmo trecho de quarenta segundos que se repete. É alta. Clara. E, quando ouvir, vai ter que abrir os olhos.
— Obrigada, Rick. Mas não posso fazer isso.
A voz dela está apática. Destruída.
— Entendo que seja assustador. É claro que é. Mas esse é o desafio, imagino. Não há outro jeito.
Malorie pensa em desligar. Mas Rick continua:
— Muitas coisas boas estão acontecendo aqui. Avançamos mais a cada dia. É claro que não chegamos nem perto de onde gostaríamos. Mas estamos tentando.
Malorie começa a chorar. As palavras, o que aquele homem está lhe dizendo... É esperança que ele lhe dá? Ou é alguma variação mais profunda do completo desespero que ela já está sentindo?
— Se eu fizer o que está me dizendo para fazer — pergunta Malorie —, como vou achar vocês dali?
— Da divisão do rio?
— É.
— Temos um sistema de alarme. É a mesma tecnologia usada para acionar a gravação que você vai ouvir. Quando pegar o canal correto, vai percorrer mais uns cem metros. Então vai acionar nosso alarme. Uma cerca será baixada. Você ficará presa. E vamos verificar o que foi pego pela nossa cerca.
Malorie estremece.
— Ah, é? — pergunta.
— É. Você parece cética.
Imagens do velho mundo passam rapidamente pela cabeça de Malorie, mas, com cada lembrança, vem uma coleira, uma corrente e também a sensação instintiva que lhe diz que aquele homem e aquele lugar podem ser bons, ruins, melhores do que aquela casa, ou piores; não importa: ela nunca mais se sentirá livre.
— Quantas pessoas moram aí? — pergunta Rick.
Malorie ouve o silêncio da casa. As janelas estão quebradas. É provável que a porta esteja aberta. Ela deveria se levantar. Fechar a porta. Cobrir as janelas. Mas parece que tudo está acontecendo com outra pessoa.
— Três — responde ela, desanimada. — Se o número mudar...
— Não se preocupe com isso, Malorie. Pode vir com quantos quiser. Temos espaço suficiente para algumas centenas de pessoas e estamos trabalhando para aumentar esse número. Só venha assim que puder.
— Rick, você pode vir me ajudar agora?
Ela ouve o homem respirar fundo.
— Desculpe, Malorie. É arriscado demais. Precisam de mim aqui. Entendo que isso pareça egoísta. Mas infelizmente você vai ter que vir até a gente.
Malorie assente, em silêncio. Em meio ao sangue, a perda e a dor, ela respeita o fato de que ele quer ficar em segurança.
Só que não posso abrir os olhos agora e tenho dois recém-nascidos no colo que ainda não viram o mundo, e o cômodo cheira a xixi, sangue e morte. O ar entra depressa lá de fora. Está frio e eu sei que isso significa que a janela está quebrada ou que a porta da frente está aberta. Tão perigosamente aberta. Então tudo isso parece bom, Rick, de verdade, mas nem sei como vou chegar ao banheiro, muito menos navegar um rio por sessenta quilômetros ou seja lá o que você tenha dito.
— Malorie, vou conferir se você está bem. Vou ligar de novo. Ou você acha que virá para cá imediatamente?
— Não sei. Não sei quando vou poder ir.
— Tudo bem.
— Mas obrigada.
Esse parece ter sido o agradecimento mais sincero de toda a vida dela.
— Vou ligar daqui a uma semana, Malorie.
— Está bem.
— Malorie?
— Oi.
— Se eu não ligar, pode ser que a nossa linha tenha sido enfim cortada. Ou que a sua tenha sido cortada. Mas confie quando digo que estaremos aqui. Pode vir a qualquer hora. Estaremos aqui.
— Está bem — responde ela.
Rick dá o número de seu telefone. Com a caneta, Malorie anota sem enxergar numa página da lista telefônica aberta.
— Tchau, Malorie.
— Tchau.
Apenas uma conversa simples e banal ao telefone.
Malorie desliga. Então baixa a cabeça e chora. Os bebês se mexem em seu colo. Ela chora por mais vinte minutos, ininterruptos, até que grita quando ouve algo arranhar a porta do porão. É Victor. Está latindo para que o deixem sair dali. De alguma forma, por alguma bênção divina, ele foi trancado no porão. Talvez Jules, ao notar o que estava prestes a acontecer, tenha feito isso.
Depois de pendurar os cobertores de volta e fechar as portas, ela usará uma vassoura para vasculhar cada centímetro da casa à procura de criaturas. Seis horas se passarão até Malorie se sentir segura o bastante para abrir os olhos. E então ela verá o que aconteceu na casa enquanto paria.
No entanto, antes disso, com os olhos bem fechados, Malorie ficará de pé e voltará pela sala de estar até chegar ao topo da escada do porão.
E lá vai esbarrar no corpo de Tom.
Ela não saberá que é ele, apenas achará que seu pé encostou em um saco de açúcar ao se ajoelhar diante do balde de água do poço e começar o difícil trabalho de limpar as crianças e a si mesma.
Ela falará várias vezes com Rick nos meses seguintes. Mas logo as linhas telefônicas pararão de funcionar.
Malorie levará seis meses para lavar a casa de todos os corpos e do sangue. Encontrará Don no chão da cozinha, tentando chegar ao porão. Como se tivesse corrido até lá, enlouquecido, para pedir que Gary devolvesse sua sanidade. Ela procurará Gary. Em todos os cantos. Mas nunca encontrará qualquer sinal dele. Sempre ficará atenta a ele. À possibilidade dele. Lá fora. No mundo.
A maioria dos moradores da casa será enterrada em um semicírculo em torno do poço, no quintal. Ela sempre sentirá os montinhos irregulares, as covas que cavou e preencheu vendada, sempre que sair para pegar água para si mesma ou para as crianças.
Tom será enterrado mais perto da casa. Na área gramada à qual leva as crianças, vendadas, para respirarem ar fresco. Um lugar, espera ela, onde seus espíritos estejam mais livres.
Quatro anos se passarão até que ela decida ir para o lugar que Rick descreveu ao telefone.
Mas, por enquanto, Malorie apenas se lava. Agora ela apenas limpa os bebês. E os bebês choram.


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